segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Benevolação



. Ponto. Ponto final. Você entende? O ponto final é o sinal de pontuação utilizado para determinar o final de uma sentença. É o indicador de pausa absoluta depois daquilo que se quer dizer. Você sabe que eu sempre digo o que quero dizer. Digo agora: tudo acabado entre nós. Não é hoje e nem é madrugada. Porém, tudo acabado entre nós. O que está acabado entre nós acabou ontem e, agora, o dia se faz claro. Não era isso que você queria? Que cada um seguisse o seu rumo? Pois bem. Se você não diz, digo eu: tudo acabado entre nós. Digo olhando em seus olhos para que você não me chame de covarde. Digo em alto e bom som para você não achar que eu não sei o que estou falando. Digo com toda a lucidez que pode me acompanhar para que você não diga que isso é mais uma de minhas loucuras. Digo agora antes que eu sinta a sensação “de que já vou tarde”. Digo e repito: tudo acabado entre nós. Só não vou dizer que me arrependi, que você não foi homem o bastante para mim ou que eu não te amei. Eu não minto – embora eu seja boa em inventar mentiras – você sabe que eu não minto. Não me arrependo das coisas que eu faço. Prefiro o sabor do dissabor da derrota ao amargor do sentimento de não ter tentado. Homem para mim, você foi e muito. Me amou até que eu dissesse basta. Me ensinou a gemer como quem teme o desconhecido. Me fez ver o mais caloroso vapor do sexo. Fui puta porque você quis – mas eu gostei! E eu te amei. Amei loucamente, avassaladoramente, ferozmente, desesperadamente. Amei. Já uso o verbo no pretérito, percebe? Amei. Não amo mais. É assim comigo. Eu amo infinitamente até eu perceber que estou amando de menos a mim mesma. Não é culpa sua. Talvez, seja. Eu só quero dizer que você não me amou como eu te amei. Talvez, esse seja o teu jeito de amar. E esse é o meu, com certeza. Eu quero amor pago na mesma moeda. Você nunca me pagou igual. Pagou do seu jeito, é verdade. Mas eu cansei. Cansei de sonhar que você pode me dar exatamente o que eu quero. Não pode. Eu amo demais quando eu amo. Se recebo na mesma moeda, tudo bem. Senão, nada feito. Se eu ficar com você eu vou amar demais a você e de menos a mim. Não quero isso. Não sei se isso é egoísmo. Não me considero egoísta. Não é preciso que eu mencione que estamos cansados de nossas brigas. Elas eram de igual tamanho de nosso amor. Ninguém podia com elas. Nem mesmo nós. Mas amor acaba. E o nosso acabou. Acabou como a última gota daquela garrafa de vinho especial. Nos deixando com gosto de quero mais e só. Não tem mais vinho, não bebemos mais e pronto. Eu vou, você fica com tudo. O que não posso deixar está em meu coração. O resto é resto. Eu vou e lembre-se: tudo acabado entre nós. Ponto. Ponto final.


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domingo, 26 de dezembro de 2010

Texto Santo de cada dia

Todo texto tem seu dia. Hoje, é dia de texto branco. Livre de todo e qualquer pensamento emaranhado que as palavras possam deixar. Faz-se tempo de ouvirmos apenas a alma falar. Ela fala ao som do coração. Um tum e a expulsão de tudo que não vale mais. Dois tuns, vem o que realmente importa. A vida é breve seja para mim ou para você. Os segundos que correram não voltam mais. Quero viver os dias como quem nasce novamente a cada manhã. Quero encostar meus lábios nos teus sempre que eu te encontrar. Quero cantar bem alto quando a chuva cair. Quero guardar meu pranto para regar jardins. Quero ir e voltar. Quero dormir com a tua mão em meu peito. Quero espalhar as estrelas do céu. Quero beijar pezinhos de recém-nascidos. Quero conversar com animais para espantar a solidão. Quero mais do mais simples. Hoje e a cada dia da minha vida. Que assim seja!




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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Alô

Por tudo que esta data, verdadeiramente, representa, desejo a todos um...

Feliz Natal!!! Ho!Ho!Ho!

domingo, 19 de dezembro de 2010

Cheiro de Jasmim

“... eu espero por você
E não me canso de esperar
A porta aberta vou deixar
Se quiser pode voltar...”
(Fábio de Melo)




Aquele calendário insiste em determinar os dias que passam desde que você se foi. A minha luta com ele é constante porque o tempo que ele indica não faz jus ao sofrimento que carrego desde então. Tudo está diferente. Clichês como a vida continua, tudo passa ou o tempo tudo cura, não se aplicam a minha dor. Quando eu vejo flores em janelas, é em você que eu penso. Quando quero chamar por alguém, é o teu nome que vem à minha boca. Se quero comer um doce, vejo você escolhendo as frutas de acordo com a estação. O teu cheiro ainda está no corredor da casa, teus olhos me seguem aonde vou, tua roupa preferida tornou-se parte do meu roupeiro e meu cachorro, já velhinho, só encontra paz em teu quarto. Ontem, lembrei de você outra e outra vez. Lembro agora e lembrarei amanhã. O tempo já se faz tanto mas não é o suficiente para que eu não sofra mais ao enxergar você em meu pensamento. Paro e penso na minha fraqueza. Será? Seria tão mais fácil se eu pudesse virar a página do livro e a história evaporasse como fizeste. Acontece que eu viro a página mas a história é ainda a mesma. Você é parte da minha história e a minha história só terminará no dia em que eu cair dura de costas. Já rezei novenas aos montes para te esquecer. Nada. Desisto! Entrego-me agora ao meu pensar em você diário. Assim como o remédio que tomo todas as noites. Sou parte do todo que era quando estavas comigo. Fato. Jamais voltarei a ser aquela que eu era quando estavas comigo. Eu sei! Aceito a minha condição enquanto espero para, novamente, sentir o calor em teu peito exalando jasmim. 


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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Cochilo de Deus



Minha amiga me ligou hoje bem cedo. Me acordou dizendo que precisava contar a fofoca do dia – um pouquinho menos e ela quase me contava a fofoca de ontem. Totalmente eufórica ela me contava sobre a Vera que acabara de chegar da Alemanha. Vera costumava sair conosco no tempo da escola. Éramos três. Eu, a Martinha e a Vera. Às vezes, éramos mais - desde que arranjássemos um namoradinho. Quando entramos na faculdade, a Martinha e eu, a Vera se afastou um pouco de nós. Na mesma época, ela engravidou do Osmar e os dois se casaram. Quando terminamos a faculdade, a Vera e o Osmar tiveram seu terceiro filho. Mais alguns poucos meses e os dois estavam separados. A Vera e os seus três filhos foram morar no interior com a mãe dela. Ela precisava de alguém para ajudar com as crianças. Além do mais, a grana que o Osmar dava a ela para o sustento das crianças mal dava para comprar o leite que eles tomavam e as fraldas que sujavam. Mesmo com vidas tomando caminhos tão diferentes, nós nunca deixamos de nos ver. No primeiro encontro depois da separação a Vera estava desolada. Três filhos e de volta a casa da mãe. Dinheiro para as nossas noitadas, não via nem de longe. E mesmo que tivesse dinheiro. Dona Carminha não ficaria com os netos para a filha ver a noite virar dia. A vida da Vera virara um tormento. Ela, não era para menos, se desesperou. Naquela cidadezinha de nada, como ela iria ganhar o dinheiro suficiente para criar os filhos decentemente? Coitada da Vera! Algumas pessoas podem até dizer que isso foi bem feito para ela. Hoje em dia ninguém mais engravida sem querer. Todo mundo sabe o que fazer para evitar uma gravidez. E a Vera, além de não evitar a primeira gravidez, engravidou mais duas vezes. Uma atrás da outra. Vai ver o Osmar se esqueceu de comprar uma TV para a casa deles. Pobre Vera. Morro de pena dela. Não somos obrigados a acertar todas as cartadas na vida. Quando a Vera já estava para perder os cabelos da cabeça, ela conheceu a Luzinete Schneider. Bem, antes de ir morar na Alemanha, Luzinete Schneider era, na verdade, Sandro da Silva. Os dois estudaram juntos no grupo escolar da cidade onde moravam. Vera sempre teve certeza da homossexualidade do neguinho Sandro. O que ela jamais desconfiou era que Sandro iria virar travesti de luxo na Alemanha e viria a se chamar Luzinete e, muito menos, ter sobrenome alemão. Mas sabe que a sorte de Vera mudou completamente depois de ela encontrar com a Luzinete? Sandro, quer dizer, Luzinete voltara àquele interior para o enterro da mãe. Luzinete havia gastado tudo o que o dinheiro poderia pagar para livrar a mãe daquele câncer maldito mas não teve jeito. A velhinha morreu. Sorte da velhinha é que ela não morreu pobre como nascera. Luzinete sempre foi muito justa – e generosa – com a mãe. Aliás, a sorte de muita gente mudara quando a estrela de Sandro brilhou mais forte. A parentada toda ficou abastecida. E, agora, com a morte da velhinha, então, havia mais para ser distribuído. Porém, Luzinete estava de fora disso. Nada ali lhe interessava mais. Tudo que ela queria era chegar à Alemanha, voltar a trabalhar e continuar sua vida sem dever nada a ninguém. Acontece que Luzinete tinha agora uma missão. Ao se compadecer da amiga de infância, convidou-a para ir com ela para a Alemanha. Garantiu a amiga: Lá, você terá como ganhar dinheiro de verdade. E não precisa ser como eu. Pode ser digna e honestamente. Mais como um ato desesperado que qualquer outra coisa, Vera embarcou com a, agora, amiga no dia seguinte ao enterro de dona Zefinha. Luzinete pagara passagem e prometeu custear a Vera até ela ganhar dinheiro o suficiente para pagar suas despesas. Vera deixara os filhos e a promessa de uma vida sofrida. Dias depois, ela nos confidenciou que não tinha sonhos nem ambições com relação à Alemanha. Tudo que ela queria era ganhar dinheiro para sustentar a si, aos filhos e a mãe dela, claro. Dona Carminha só ganha dinheiro para comprar remédios e o básico que uma casa precisa. Por isso, ela ficou empolgada com a viagem da filha. Queria mudar de vida, finalmente. Dona Carminha ficou tão feliz que prometeu cuidar dos filhos de Vera com todo zelo até que a filha pudesse levá-los para a Alemanha. Vera está na Alemanha há um ano e meio e não pretende voltar. Ela trabalha numa agência de viagens de lá – já fala alemão fluente. Está ganhando dinheiro para viver como rica, considerando a situação que temos no Brasil. Manda um dinheirão para a mãe e os filhos todo mês. Está tudo tão bem que a grana do Osmar é entregue ao padre Alberto para caridade. Ontem, a Vera chegou da Alemanha. Veio visitar a mãe e os filhos. Disse não aguentar mais de saudade. A Martinha foi buscá-la no aeroporto sozinha porque eu tive reunião no escritório até tarde. A fofoca, motivo desta ligação matutina é a Vera. Muito bem Martinha, fala! Como se fosse preciso pedir para a Martinha falar. A Martinha fala pelos cotovelos! Foi logo desembuchando que a Vera voltara da Alemanha cheia do dinheiro. Blusa, calça, sapato, perfume, jóias – exageradas como ela sempre gostou, malas, tudo de grife. Mas a nossa amiga virara uma esquizofrênica. Foi logo perguntando pelo número da doutora Suênia. Ela queria fazer um tratamento relâmpago, penso eu. Segundo a Martinha, a Vera fez um escândalo dentro do avião. Estava com medo que o avião caísse e ela não queria morrer. A própria Vera foi logo explicando a Martinha que havia desenvolvido síndrome do pânico, transtorno de ansiedade, toc, depressão e mais, ainda se disse bipolar. Se eu estivesse lá, teria dito logo que isso foi macumba do Osmar. Ele nunca se conformou com a partida dela. Aquela Vera estava completamente louca. Disse estar tendo crises de falta de ar que a levam sempre ao hospital. Na Alemanha, os médicos já explicaram que se tratava de um distúrbio psicológico. E Vera sabe a causa disso. Agora, ela tem dinheiro mas não tem os filhos. E tão cedo ela não poderá levá-los para a Alemanha. A documentação para a sua permanência naquele país está em andamento ainda. No aeroporto, Vera desabafa com a Martinha quando um senhor entra na conversa. Vera contava que no domingo antes de viajar foi até uma igreja para, mais uma vez, pedir a Deus que a curasse desse mal. Foi aí que ouviu o padre dizer que precisamos ser mais fortes em nossa fé. Disse o padre que quanto mais pedimos algo a Deus estamos testando o Seu poder. A Vera ficou balançada com aquilo. Acabou se culpando pela sua cura não alcançada. Era falta de fé e muitos testes a Deus. O senhor que entrou na conversa, veio para dizer que o padre estava errado e que era preciso fazer nossos pedidos a Deus quantas vezes fosse necessário. Disse o senhor que, às vezes, Deus cochila. Mas a Vera não concordou. Gritou logo que Deus não cochila NUNCA! Eu não tenho certeza disso. Sei que eu acabei acordando antes da hora e que a Vera, mesmo com sua esquizofrenia a flor da pele, não vai deixar a vida alemã para ficar com os filhos.


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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Colorindo

Em meu reinventar da vida
O teu lugar é ainda o teu
O meu lugar é ainda o meu
Faltam algumas estrelas no céu
Mas o nosso amar é cheio de luas
E as estradas de tijolos coloridos.




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sábado, 27 de novembro de 2010

Vitrais



Borboleta pousa na flor da janela
Ficaram coradas minhas bochechas.

Molho de tomate fervendo na panela
Dia de semana. Todo dia é dia de macarronada.

Ontem padre falou sobre o humano amor de Deus
Enquanto eu precisava sentir amor divino.

Duas maçãs no escuro, vejo claro
Prefiro gozo duplo a orgasmo lavado em água.

Fim do dia, gato e cachorro se aninham
Deito e espero o dia nascer feliz.


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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Mulher que me contava histórias

Nascemos em épocas diferentes, embora, não tão distantes que nossos Destinos não pudessem se cruzar. O encontro entre Marina e eu estava selado.

Notícia na TV: Entre os dias 20 e 28 de novembro deste ano, acontece o 1º Salão Internacional do Livro da Paraíba – Leitura Para Todos, uma iniciativa do Governo do Estado, Ministério da Cultura e SEBRAE. Evento interessante para quem gosta de ler e escrever.

Surgiu o desejo. No entanto, a minha agenda não me deixou sequer saber mais do evento até que o calendário marcou o dia de hoje. Conversa matutina sobre o evento e eu sigo para olhar a programação. Era dia de conversa com Marina Colasanti. Eu deveria ir. Não apenas por gostar de ler e escrever, não apenas pelo motivo mais forte que me liga a ela (do qual falarei adiante) e sim porque é dever de todo apreciador ou estudioso de literatura, formalmente ou não, prestigiar aqueles que fazem a literatura de um povo. Quase não fui, mas cheguei lá. Era nosso Destino.

Não há necessidade aqui de que eu fale do quanto é prazeroso, curioso, vibrante ouvir alguém que mexe com as palavras e que está na capa do livro falar de seu ofício. Foi uma conversa agradabilíssima em que o tempo parou ao ouvirmos Marina apresentar seu novo livro, Passageira em Trânsito (Livro de poemas onde ela retoma suas memórias de criança nascida na África, criada na Itália de onde emigrou para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial). Passageira em Trânsito foi o ticket para a viagem ao mundo encantado da Marina. Ao contar algumas de suas memórias ela nos levou a viajar por toda a sua obra, contando-nos um pouco da sua maneira de criar, de quem é a Marina pessoa e a Marina escritora.

O sorvete no final do passeio foi o melhor momento do nosso encontro. Sabe aquele sorvete que criança ganha depois de aperrear bem muito? Meu sorvete foi o momento em que pude falar para a escritora, ganhadora de quatro prêmios Jabuti (o último na categoria Poesia por Passageira em Trânsito) que eu tenho pelo menos um jabuti aqui em casa de nome Donatelo e apelidado por Rubinho. Hehehehe! Não. Nada disso. O meu sorvete de fim de passeio foi poder dar um abraço e dizer aquela figura o quanto ela foi importante na minha vida como leitora e ,certamente, como escritora (no sentido de quem sabe organizar palavras no papel).

Logo no começo da conversa, Marina falou de não se lembrar dela como não-leitora, pois que, em sua casa, qualquer um podia ser escritor. Todos sempre leram e escreviam bem. Então, eu me lembrei de mim enquanto criança e daquilo que eu lia numa casa em que quase ninguém lia, muito menos escrevia. Não vem ao caso falar de que livros eu li primeiro ou de como comecei a ler. Na verdade, eu não lembro muita coisa. Lembro de um nome: Marina Colasanti. Minhas primeiras leituras remetem a esse nome. E um nome era tudo que a escritora era para mim. Ela não tinha um rosto nem um corpo. Tudo que eu sabia ao ler ou ouvir aquele nome era que aquela era “a mulher que me contava histórias”.

Com o tempo, aquele nome passou a ter rosto e corpo. Porém, o que estava diante de mim, hoje, era mais que um nome, mais que um rosto, mais que um corpo. Diante de mim estava o despertador de todo o imaginário que há em mim. E ela ainda disse que adorou saber que fazia parte da minha vida de forma tão especial. Ai, ai...

Suspiro.




quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Chão de mim



Solto minha roupa ao chão como quem deseja que ela leve todo o peso em minhas costas.
Nada feito! Mesmo livre, o peso do mundo parece dobrar sobre meus ombros.
Estou muito cansada. Parem o mundo que eu quero descer.
Frasezinha clichê? Não, não! Prefiro frasezinha de merda. Mais realístico. Realisticamente,
Eu, hoje, sou chão. Estou cansada e não entendo porque o mundo tem que girar
Mais rápido, às vezes. Fico tonta na primeira volta. Foi sempre assim.
Parque de diversão na Lagoa, seis, sete anos, aviãozinho rodando, vômito para todo lado.
Enjôo. Nada de filhos meus. Só os dos outros. Cansei. Estou cansada.
Me deito ao chão. Chão onde estão minhas roupas. Chão, aquilo que hoje sou.
Me deito ao chão. Chão de terra batido.
Me deito ao chão esperando desaparecer na poeira que colore o dia.




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domingo, 31 de outubro de 2010

Des(no)velo




Lançada a semente,
lavra o escritor o fruto.

tecido amor
amortecido
a morte
cido
amor tecido
para amparar
a queda


À Letícia Palmeira


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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Writing to Juliet





Amen.

Dear Juliet, a friend of mine taught me how to start letters in an unconventional way, let me say like this. It means that the first step of the writer of the letter is to show the one it is addressed to what is the most import thing that is being said. Starting with amen I declare my vocal signature. These are my thoughts and I believe them.

It’s almost midnight of a mid day. I slept and woke up already. Maybe I’m a little bit early for work. Maybe I should go back to bed but I’m really afraid of facing the inscriptions of the walls in my bedroom. Since that day a thought has crossed my mind every night I go to bed. I’ve been fighting with my body to get some sleep. I quit the pills. Now I have to pay the price. It’s been harder these days I found out people do not love each other.

Why is it so hard to feel and share some love? Real Love as John Lennon sang. Don’t need to be alone. No need to be alone. People don’t need to be alone. But they are. They don’t want to be alone but they are. Yes, they are. Most of the times, they don’t even realize it. They just go on living – by living I mean running against time - and spreading people apart. It makes me feel sad. It really does.

You know, I was not the kind of child that saw the world as The House of Happy People. People were also sad when I was a child. I was sad. My mum was sad and so were my brothers. But I was happy too. Especially because I could not see the reason why people are so sad. Now I see it. People do not love people. They like people. They like the ones who fit their needs. I have my own needs. Don’t you see it?

This morning I saw someone trying to kill somebody. Lots of people did not care. They just wanted to be part of that festival. That’s the world we’re living in. This is when I feel relieved for not having children. At least I won’t leave anybody the legacy of my human essence. Someone has also mentioned something like that. Nothing left to do. This is how the world makes me feel now.

Juliet, can you give me some advice? No… Advices are not good… Can you tell me the secret of your love? It is still alive. It is still a model for lovers. Although I’d never kill myself for love. I’d rather live for it.

Anyway, I hope you feel better than me and I hope you still can see clouds made of cotton.

All my loving (I still have some),

Linda.





sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Gota que transborda copo




A cigana não leu o meu destino. Nem pudera. Ao contrário dos gregos, creio em um só Deus. Sou católico apostólico romano brasileiro e membro do Apostolado do Sagrado Coração de Jesus. Vou à missa toda primeira sexta-feira do mês. Católicos não acreditam em destino pré-moldado. Deus nos deu o livre-arbítrio, faço o que quiser da minha vida. Muito bom para ser tão simples assim. Ando rodeado de abutres que parecem anunciar minha morte prematura. Um moço assim tão jovem como eu não pode morrer agora. Não por nada especial, não. Vivo só. Só com o meu Deus, só com o meu cachorro, só com o meu trabalho, só com a doença da minha mãe, só com minha sobrinha fugitiva, só com os problemas do meu irmão, só com o único livro que tenho, só com o meu remédio, só com a mulher da noite. Outro dia, roubaram algo valioso no escritório em que trabalho. Culpa de quem fica sozinho na sala do escritório no horário do almoço. Querem que eu pague o tal objeto. Não quero pagar. Já gastei dinheiro extra esse mês com a cirurgia de castração do meu cachorro. Não quero outros cachorros. Quero continuar só com ele. Billy Paul é o meu cachorro. – Intervalo para pensar como era bom quando eu era criança. Tinha vários cachorros. Todos caíram do caminhão da mudança quando viemos do interior para a capital. Acho que, por isso, não quero mais cachorros. Só o meu Paul. Billy Paul. – O escritório que fique sem o tal objeto valioso. Já tenho problemas dos outros demais. Estou cansado. Até dispensei a mulher da noite de hoje. Esta noite, vou ficar só. Só comigo e com mais ninguém. 


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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sempre o Romantismo




A liberdade guiando o povo - Eugene Delacroix


Dentre as várias acepções que existem sobre o termo romantismo, a que mais me interessa é a que relaciona o movimento à renovação, à fuga a modelos pré-estabelecidos. A acepção mais popular do termo, contudo, relaciona-se à expressão do sentimento de amor entre duas pessoas – seja este sentimento correspondido ou não.

O movimento romântico teve sua gênese na esteira das transformações sociais vividas após a revolução francesa. Os românticos acreditavam que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade defendidos pela revolução destruiriam as velhas estruturas do poder opressivo dos estados monárquicos e absolutistas. Ao verem que a revolução criou apenas outra forma opressiva de poder – desta vez a exploração da classe operária pela burguesia – os artistas românticos entraram numa fase de desilusão, à qual os leva à negação e à fuga da realidade. Um mundo corrupto, opressor e mentiroso não merece ser representado pela arte, sendo assim, o refúgio na subjetividade, no sonho, no devaneio e na infância passa a ser a tônica de muitos dos trabalhos do romantismo. Basta lembrarmos dos versos de Casimiro de Abreu: “Ah que saudade que tenho da aurora da minha vida/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais”.

Um dos bons exemplos da desilusão romântica vem do inglês William Blake que cristaliza dois momentos do romantismo em duas obras. A crença na possibilidade de um mundo renovado e livre da opressão revela-se em Canções da Inocência (Songs of Inocence) e o enfrentamento com uma nova realidade de exploração apresenta-se em Canções da Experiência (Songs of Experience). Certamente é essa crença numa transformação social que gere o fim da dominação de uma classe pela outra que faz o adjetivo “romântico” ser atribuído a todo aquele que é ingênuo o suficiente para acreditar que isso seja possível.

Como afirmei inicialmente, o que mais importa no movimento romântico é a renovação estética que determina o fim de modelos para o fazer poético. A forma revolucionária do romantismo é a liberdade da expressão do sentimento seja ele de amor, de fuga, de revolta, de contestação. Quando digo que sou romântico, estou dizendo que não creio em modelos. Modelos de vida, modelos de enquadramento social, modelos de modelos de modelos. Não sou ingênuo a ponto de acreditar no fim da opressão porque aprendi com os próprios românticos, em especial Blake, que ele não é possível, mas sou romântico o suficiente para crer que o meu “eu” (ou meu mim) deve ser a medida de tudo que existe.

Haja saúde.

José Ferreira Sobrinho - 13/10/2010

sábado, 2 de outubro de 2010

Espelho




Todos os dias quando acordo – alguém já cantou essa canção – não penso em quem sou. Vivo. Mecanicamente a maior parte do tempo. Como, tomo banho, remédio, trabalho, escrevo, faço compras, sexo para alimentar a carne, vou e volto. Entre essas idas e vindas é que há o momento de reflexão. Quem não pensa naquilo que é ou no que faz não está vivo por inteiro. E há que se fazer a diferença entre o que somos e o que fazemos. Não cheguei a conclusão de que nada sou. Eu Sou! Mas engana-se quem pensa que eu sou dona de casa, escritora, professora, puta, orientadora de todas as horas para assuntos extremos. Lavar louça, escrever umas linhas, ensinar o 2 + 2, dar conselhos, são coisas que eu FAÇO. O que eu SOU vai muito mais além de deixar a cozinha limpa, montar um texto ou um poema, ver Pitágoras sorrir, satisfazer o homem em minha cama, dizer as pessoas o melhor passo a seguir. Eu SOU parte integrante da Natureza, amante da lua, do mar e do homem que tenho. Eu SOU luz, fogo, parteira, cantante. Eu SOU o hoje e o amanhã que vai chegar. Eu SOU aquela que ainda guarda conchinhas recolhidas na praia de São José da Coroa Grande. Então, eu vejo que a mecânica faz parte da vida, da matemática que vivo e ensino. Só. Dentro do espelho eu vejo vulcão em erupção na sua mais perfeita atividade de vida. Viva. 


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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Discórdia

Quem dita o destino de cada um? Quem é esse deus supremo a quem nem mesmo Zeus tem acesso? Por que devo entregar meus sabores e dissabores nas mãos de três irmãs cegas? Por que devo seguir uma estrada escura e tenebrosa quando posso seguir uma estrada de tijolos amarelos? Talvez, o Destino seja mesmo imutável. Talvez, seja aleatória a escolha de quem vai ser bom ou ruim. De quem vai servir aos outros e de quem vai pensar apenas em si. Pobre de ti, ínfima criatura. Caístes nas garras de Discórdia. Oposta a Harmonia, Éris alimenta-se em causar separação, afastamento. Pobre de tua sina, ínfima criatura. Escolheram por teu destino ser instrumento da filha de Nix. Pobre de ti que não percebes que ficas mais só a cada Pomo da Discórdia que entregas. Pobre de ti que não lutas contra o teu destino. Antes morrer que viver a semear Discórdia.





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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Delírio


Saudade dilacera
CORAÇÃO
Machado que corta
ÁRVORE
Sem se importar com seu
PRANTO
Brinca em teu espírito o
TEMPO
Mostras-me em
SONHO
O antes e o ontem
SABER
É desejo que arde e
QUEIMA
Por onde
ANDA
A tua face de
AGORA?

Image by -Adnil on DeviantArt

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Alma mater

Meus poemas não tem história,
não tem construção.
São apenas palavras geradas,
a-mar-ra-das
e soltas dentro de um vulcão.

O traçado da viagem que faça você...




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sábado, 11 de setembro de 2010

Dialética

A partir da idéia que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma
conseqüência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte.
Michel Foucault




Canto a felicidade que emana de minha liberdade.

Liberdade mergulhada na filosofia de Foucault.

Liberdade batizada no gnôthi seauton.

Liberdade de quem conhece a si mesmo e as relações de poder que o cercam. 

Uso minha liberdade.

Sou escritora de narrativas desgarradas e poemas soltos.

Sou mãe sem amarras. 

Mulher que deseja corpo.

Criatura que se deixa viver. 

Falante que esquece vírgulas.

 Obra de arte pintada por suas próprias mãos.





Image by Pis7Li on DeviantArt



http://www.youtube.com/watch?v=qujfdzLJPyU&ob=av2e

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Count the colors in your bedroom


To see the Summer Sky
Is Poetry, though never in a Book it lie -
True Poems flee –
(Emily Dickinson)



Though it’s dark outside
You have a rainbow of your own
Never forget to look inside
The walls surrounding you







Image by ~CaterpillarOfAngst on DeviantArt

sábado, 4 de setembro de 2010

Nota ao rei da Noruega



As coisas terminam
Quando acabam
É o rio que perdeu
Suas águas
A labareda que ficou
Sem a chama

O prato com sobras
De comida sobre a mesa
Já não a fome sacia
O calor evapora o vinho caro
Dentro de taça chinfrim

Sexo barato deixa asco
Rasgo trapos que me destes
Sigo nua noite adentro
Descanso em corpo ardente

Amanheço antes do sol
Sandálias nas mãos
Uma carta rasgada
Momus não reconheço mais



Image by ~winiP on DeviantArt

domingo, 29 de agosto de 2010

Desnecessário






A minha janela não tem flor
Todas as sementes lançadas
Não vingaram





Image by LonelyPierot on DeviantArt

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Portador de consciência

Ao atirar-me pela janela abarco o mundo todo com as mãos. É lá fora, no mundo, que posso usar dos personagens que alimento. É quando posso ser contente para me juntar aos que riem. É quando posso chorar para dividir a dor com aqueles que a sentem. É quando posso ser General de guerra para combater o mal. É quando posso ser professor e te ensinar a dar nó em pingo d’água. É quando posso ser bruxa e te dar a maçã envenenada. É quando posso ser cantor e te cantar uma canção. É quando posso ser poeta e te declamar meus versos desalinhados. É quando posso ser astronauta e te levar para catar estrelas. É quando posso ser cientista e descobrir a cura do teu mal. É quando posso ser chato e te dizer para não fazer o que queres. É quando posso ser tua mãe e te botar de castigo. É quando posso ser Cérbero e não te deixar sair do inferno que nos rodeia. É quando posso ser deus e te recriar. Ao jogar-me de volta ao meu quarto, eu sou apenas eu. Sacola de virtudes e defeitos, flor de Narciso sem todas as pétalas, mulher e mãe de todos os filhos, escritora sem par, caçadora que devolve borboletas ao ar. Simplesmente eu e não quem você quer que eu seja.
 



Image by  Pocket Zoo on DeviantArt

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Primera Persona

“Apetite e sexo são os grandes motores da história, preservam e propagam a espécie,
provocam guerras e canções (...)”.

Isabel Allende in: Afrodita


Eu. Tudo que há dentro e fora de mim faz de mim quem sou. Não posso ser só. Sou plural. Sou um aglomerado de sentimentos, ideias, pessoas e coisas. Sou também um monte de órgãos, ossos, peles e gorduras. Eu. Não me tomes por outra. Sou quem sou. Inteira. Embora, às vezes, em partes. Fome parte de mim. Sinto fome de doces, especialmente. Doces que salgam e adoçam a boca. Sinto fome de você, unicamente. Meu sexo oposto. Você que me afoga em amor de cama. Sexo é desejo é fome. O doce me preserva a vida. Você não propaga a minha espécie. Eu sigo. Brigo por um doce. Brigo por você. Faço louvor ao doce. Faço louvor a você. As canções, ouço de ti. Vou aqui e allende. Volto. Me vejo eu, outra vez. Sou doce. Sou você. Como e me farto enfarto. Sobrevivo vivo eu. Alquimista de cozinha e cama. Eu.





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domingo, 8 de agosto de 2010

Ímpares




Capítulo 1

Nunca sou perfeita. Às vezes, sou egoísta como agora - falo em primeira pessoa. Em todos os momentos, sou única. Esta unicidade torna-me solitária e incompreendida. Talvez, eu não queira estar junto, talvez, eu não queira ser compreendida. Na solidão, não estamos realmente sós. Há fantasmas, pensamentos e desejos rodeando o casarão assombrado que somos. A compreensão do outro me é incompleta. Ele me entende como quer. Tomo um chá, como uma torrada, abro uma bala de menta. Tudo no singular.

Capítulo 3

Números ímpares não fazem par. Por isso, não vivo em pares. Não há outra parte de mim. Apenas eu. Mesmo o espelho não me dá outro eu. Sou eu só. Tudo que me rodeia é inanimado ou não me completa. Nem pudera. O caso não é de completude. Sou inteira. O caso é de companhia. 1 + 1 = 2. Mas não. Um mais um é só um. Fim.

Capítulo N

Para não fazer par. Isso não é um lamento. Apenas uma constatação e uma afirmação. Tudo 1. Tudo singular. Hoje quero estar só. Assim, não formo par. Quero ser eu e apenas eu. Sem você, sem luz, sem música, sem livro, sem roupa. Deitada em minha cama de braços e pernas abertas a espera de mim. De quem vai me ser tudo. Há borboletas saindo de casulos em meu teto. Não ousarei contá-las. Prefiro acreditar que elas não sairão em pares...


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sábado, 31 de julho de 2010

8 Pages

Her epiphany. She had her epiphany. An announcement to the end. It all was clear as she blinked her eyes. She loved him in soul and body. However, she knew the end was near. Epiphany counts the steps to the end of a story. At first love is excitement and energy. Lovers are able to have sex for uncountable hours just like animals in season. There is time to name the stars in the sky, dry drops of oceans, select every flake of snow. There is time to run going nowhere, to sing louder than Luciano Pavarotti, to write and read a whole bible of love messages. And then, the excitement was gone and the energy has vanished. She is tired. Tired of loving. Loving is hard. It is a pathogenic agent. It stills body vitality. Time says it is almost twenty years since his eyes met her smile. She is not a girl anymore. Told her the mirror. Time punishes bodies and lovers. “Let’s spend the night together?” I’m not in the mood. Sex only at holidays. No time to see stars, drops in oceans or flakes of snow. No time to run, to sing, to write or read. He counts the pages of her letters now: “Eight pages – front and back!” One of her friends dyed today. Another announcement to the end. Maybe Morrison was right. The end is our only friend. Something no one can escape from.





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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Mais doida que mulher


É verdade que aquela não era uma noite comum apesar de dia de semana. Encontro de pessoas para comemorar meu aniversário. Um grupo de mulheres se junta. Estranho ficar de expectadora. O local e a ocasião, senti que de pouco importava. Elas poderiam estar na liquidação de um shopping, no corredor de um supermercado, na esquina da rua em que moram, no salão de beleza, na reunião de pais e mestres da escola ou naquele cursinho básico de inglês para viagens. O tema da conversa seria o mesmo. Ainda tenho minhas dúvidas mas acredito que elas estavam trocando experiências sobre o ser mulher. Talvez até uma competição às escuras para saber quem era mais mulher que a outra. Eu ouvia aquela conversa estupefata. No começo ainda ri. Foi engraçado ouvir minha amiga falando no quanto comia enquanto estava grávida. Assim que elas se juntaram, o assunto já era sabido. Uma delas estava grávida. Gosto de conversas de grávidas e de mães embora não tenha filhos e nem nunca tenha ficado grávida. Mas aquela conversa me chamou a atenção. Não apenas porque peripécias de sobrinhos não contam. Sobrinhos não são filhos! Aquela conversa me chamou a atenção mesmo por eu sair dali com o meu certificado de doida em mãos e a certeza de que ser mulher é apenas um elemento figurativo na minha certidão de nascimento. Começou a minha amiga:

- Você está sentindo alguma coisa?

- Não. Apenas certa azia de vez em quando. Respondeu a grávida.

- Ah! Mas isso é normal. Depois passa. Toda mulher tem isso.

Como mulher não fica calada, a conversa desembestou. Às vezes, falavam todas ao mesmo tempo.

- Eu entrei na sala de parto conversando. Falei a cirurgia toda. Não tive meu filho de parto normal. Claro que não! Sentir aquelas dores horríveis! E a minha médica foi ma-ra-vi-lho-sa. Tudo estava pronto a minha espera. Ouvi que ela estava conversando com a sua assistente sobre o encontro amoroso da enfermeira enquanto me cortava como quem corta um peru de natal. Aí eu entrei logo na conversa. Conversei muito e não senti nada de dores que dizem serem causadas pela anestesia.

- Ah, não! Eu senti. Odiei tudo. Passei muito mal nos primeiros dias. Aliás, passei mal a minha gravidez inteira. Não quero mais engravidar. Vou ficar só com essa aí (apontando para a menininha que brincava em volta).

Houve um leve estranhamento com aquele anúncio. E a mulher logo continuou:

- Ah! Quando essa aqui tinha três meses (a menininha em cena outra vez) esse daqui (apontando para o marido que conversava, talvez, sobre futebol com o marido de outra lá) fez logo vasectomia porque eu disse logo! Não fico mais grávida.

Ela fez uma cara feia ao terminar de falar. Alguém sugeriu adoção. Certamente por acreditar que adotar uma criança é, também, uma questão de colaborar com o meio ambiente. Então a mulher se manifesta novamente.

- É pode ser... Agora eu só engravido de novo se eu vier a me casar com outra pessoa.

Espantei-me! Depois entendi. Naquele casamento ela já tem o seu sustento e uma forma de segurar o marido. No entanto, como na vida não há certezas, ela haveria de fazer o seu papel de mulher mais uma vez caso fosse preciso. Dar um filho ao marido, posar de boa esposa e mãe quando alguém estiver olhando e assegurar mais uma vez o seu ganha pão. Além de poder anunciar “eu tenho filho com ele”. Parece que ter filho com um homem dá o direito a mulher de marcar o homem. Assim como quem marca boi com ferro quente. A conversa ainda seguiu e eu lá. Assistindo a tudo. E devorando a bandeja de salgados que estava ao meu lado. Não tenho problemas para engordar e não faço exercícios físicos. Pelo menos na hora em que a conversa girou em torno da boa forma, eu pude exibir meu corpo magro e em forma – a não ser por uma barriguinha que começa a ficar saliente. Besteira diante daquelas jacas falantes. Voltando ao tema central da conversa, me atrevi a participar. Afinal, eu estava ali e era meu aniversário. Uma delas, já com filhos crescidos, dizia ter coragem para engravidar mil vezes. Só não queria era levar a criançada pra casa. Ela poderia fazer dinheiro alugando a barriga. Isso é proibido no Brasil? Não sei! Mas quem precisaria saber que ela alugava a sua barriga? A barriga é dela! Sim. Essa mesma. Quando ela falou que o seu filho, agora com vinte anos, quando bebê, só queria dormir na cama com ela e embaixo do sovaco dela, eu encontrei minha deixa. Gritei:

- Engraçado! A minha sobrinha de um ano e meio só quer dormir assim. Debaixo de sovaco do pai.

Não sei o que causou mais espanto. Se o fato de eu me atrever a entrar na conversa falando da minha sobrinha (sobrinho não é filho) ou se o fato da minha sobrinha preferir dormir com o pai. Certamente foi o primeiro fato. A conversa se dava entre mulheres, esposas, mães, gravidezes e filhos. O que eu fazia ali? Bom, era meu aniversário mas que importância isso tinha diante de tão grandioso assunto? Saí por um instante. Já tinha comido um pedaço enorme de bolo delicioso. Nem todas comeram. Há-ha! Fui ver a lua que se escondia entre nuvens de chuva. Pensei um pouco e ri muito. Não sou mulher. Sou doida. Não dependo do meu marido, decidi não ter filhos, não gosto de estar rodeada de mulheres, muito menos de fofocar sobre a loira que se mudou para a casa amarela, sobre quantas vezes a chefe do meu marido fez Botox ou sobre como certas mulheres dizem criar seus filhos. Irrita-me ouvir que quem sabe mais sobre crianças é quem tem filhos ou quem gerou filhos, disseram. Curioso é ouvi-las considerando, mesmo que rapidamente, a possibilidade de adoção. Ora! Uma falou e todas concordaram. Só engravidando para saber como é ter filhos. Então, quem adota não é mãe. Mãe é quem atira filho pela janela, mãe é quem abandona o filho no frio dentro de um saco de lixo, mãe é quem interrompe uma gravidez por achar, simplesmente, que não é hora pra isso ou que não pode engordar. Todas essas mães engravidaram. Geraram ou começaram a gerar uma vida. São mulheres, são mães. Eu entendi. Entendi também que, definitivamente, não serei mãe nem mulher. Serei doida.




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quarta-feira, 14 de julho de 2010

De volta à vida

O título deste texto é uma tradução livre do título de uma canção do Pink Floyd, lançada no álbum The Division Bell, de 1994. Trata-se de uma das melhores canções do disco e um trecho em especial traduz a força dos dizeres que nela se apresentam e se escondem. O trecho diz que chegou o momento de matar o passado e voltar à vida. Não acredito muito em matar o passado, mas acredito em trazer dele apenas o que pode servir de lição para o futuro. Depois de retiradas e aprendidas as lições, rasgo o passado em pedaços miúdos e jogo-o no lixo junto com as barras de chocolate que tanto enojam o poeta da tabacaria.

Por mais que a realidade me force a ficar aqui, eu sempre dou um jeito de sair da vida por alguns longos instantes. Deixo o mundo todo explodir ao meu redor e me tranco nos sonhos e ilusões do meu castelo de menino que quis ser jogador de futebol. Faço isso porque – como disse em outra coluna – sou um romântico imbecil e incorrigível. Certamente mais um triste anacronismo no mundo novo da imagem e das telas em terceira dimensão.

Mas gosto dos meus retornos à vida. Não porque eles venham com a esperança piegas dos anúncios de televisão, mas porque volto com a certeza de que sei qual é o meu lugar neste mundo, ainda que o tenha percebido por conta de milhões de relações intertextuais que me fizeram ser quem sou. Ao menos eu sei que essas relações existem – mesmo que este conhecimento não tenha valor algum. E falando em certezas, não as tenho. Nem mesmo a consoada me parece inevitável.

Volto com o sentimento de que sou o mesmo jovem ingênuo que acreditou ser capaz de transpor muros de insensatez e falsidade para cravar sua espada no coração de todos os cânones e doutrinas que transformam este planeta num lugar tão fantasticamente desprezível. Um jovem ingênuo, ainda que os fios brancos digam o contrário.


Voltei à vida.


Um grande abraço a todos e haja saúde.


(Imagem: DeviantArt)

domingo, 11 de julho de 2010

Ato de contrição em fim de tarde





Confesso a Deus Todo Poderoso minha mania de combinar cores e tipos de pegadores ao colocar roupas para secar — conseqüência da loucura desvairada que me acompanha.

Confesso a Deus Todo Poderoso que não mais me comovo tanto quando perco um paciente em minhas mãos — anos de profissão nos leva de um humano-profissional a um mero cumpridor de obrigações.

Confesso a Deus Todo Poderoso fingir orgasmos ao receber meu marido dentro de mim — seus olhares por cima da cerca fizeram com que eu me perdesse em mim.

Confesso a Deus Todo Poderoso cobiçar meu vizinho do lado — seus olhares incansáveis fizeram com que eu voltasse a me enxergar.
Confesso a Deus Todo Poderoso desejar os filhos de minha amiga — os meus são todos imprestáveis.

Confesso a Deus Todo Poderoso pensar em viajar pela Europa durante o sermão dominical — a ladainha daquele padre já não me toca mais.

Confesso a Deus Todo Poderoso ter dito a minha mãe que seu manjar de coco estava divino — meu pai sempre foi melhor na cozinha.

Confesso a Deus Todo Poderoso teimar em colocar meus pensamentos no papel — já soube de Professora Doutora que para ser escritor é preciso que se tenha o reconhecimento dos "pares". Duvido que os pares de sapato que eu tenha sejam suficientes para isso.

Confesso a Deus Todo Poderoso continuar a levar a vida na valsa — se tenho que viver que seja pelo riso e não pela dor.
Confesso a Deus Todo Poderoso ter pecado por palavras, atos e omissões.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Aprendizes

Estão brincando com Amor
Lá fora, estão brincando com Amor
Barbas de molho
Com Amor não se brinca
Estão brincando com Amor
Lá fora, estão brincando com Amor
Amor é menino matreiro e astucioso
Sem medidas ao lançar suas artimanhas
Estão brincando com Amor
Lá fora, estão brincando com Amor
Amor é fogo que arde sem ver
É cruel em demasia
De angelical, apenas a forma
Estão brincando com Amor
Lá fora, estão brincando com Amor
Amor se faz de tonto para ganhar o jogo
Em sua roda a graça está
Em ver amantes apartados
Flecha da paixão em um,
Flecha da repulsa em outro
Estão brincando com Amor
Lá fora estão brincando com Amor
Olhos abertos, razão em exercício
Coração é mole, coração é brinquedo de Amor
Permanecem juntos amantes
Mais expertos que Amor
(Oh, Sorte!)
Pega a tua lança, enfrenta a batalha
Por Amor se morre de amor
Enquanto a chama queima
Das cinzas Amor não renasce
Dá o teu grito de liberdade
Segura o teu Amor pelo laço
Vive mais e melhor quem
Amor consegue compartilhar
Estão brincando com Amor
Lá fora, estão brincando com Amor





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sábado, 12 de junho de 2010

Meu jeito de dizer que te amo (ou Elisire d’amore)





“Quando alguém te ama, a forma de falar teu nome é diferente.”
Billy, 04 anos.*



Nascido o amor em mim, tratei de livrar-te de todo o pecado que carregaras até ali. Rebatizei-te de acordo com os princípios de meu coração. Novo nome – um para cada ocasião - , nova vida e o que fazia sentido a partir daquele momento era eu e você. Você que é Astrogildo, Hermenegildo, Germâncio, Florisberto, Gelsomino, Suêtonio, Petronildo, Asdrubal, Juvenildo, Valdisnei, Estalonge, Virgulino, Brunislau, Leopoldo, Jovem, Palmeiras... me virou do avesso, me fez cair de ponta cabeça, ver a lua beijar o mar, desenhar coração no espelho, beber cerveja em copo d’água, cozinhar a vapor, vestir salto alto e largar o resto, pintar os lábios de vermelho, deitar na cama e não dormir. Você que é quem quer que seja me fez subir ao céu e descer ao inferno. Dias de algodão e de cão. Você que é quem quer que seja transformou meu conto de fadas em novela das oito. Autores telespectadores. Você que é quem quer que seja não sabe que do Destino não se esconde. Cloto pode ser sabotada mas continuará firme. Você que é quem quer que seja ainda me faz querer que você seja Aquele a me ver por dentro. Defeito de Amor. Você que é quem quer que seja vai continuar recebendo novo nome. Livro-te de teus pecados. Por isso, você que é quem quer que seja não se espante ao ouvir minha voz chamar-te por um nome diferente. É que esse é meu jeito de (continuar a) dizer que te amo.



* Nos Estados Unidos, há algum tempo, psicólogos e educadores fizeram uma pesquisa com crianças de 4 a 8 anos. A intenção era saber como as crianças entendiam o sentimento do amor. A pergunta feita as crianças foi “O que é o amor?” Cada uma delas respondia como bem estendesse. Billy era uma das crianças participantes e eis a sua compreensão do que seja o amor.


Escrito para o 1o concurso Literário do Espaço Aberto:
http://um-blog-para-todos.blogspot.com/


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segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Terço

MARIA LÚCIA. Uma mulher feita daquilo que a vida lhe dera e não das escolhas que poderia ter feito. Nascida em cidade do interior antes que terminasse a segunda década dos anos de 1900, filha única e de um único irmão. Aos três anos de idade perde a mãe. Seu pai a entrega a uma madrinha que só conheci de nome. Tinha nome de personagem de conto de fada e agia como um. Maroca. Madrinha Maroca. Se esse não era seu nome verdadeiro nunca soube qual era. Viveu longe do irmão, cresceu como qualquer mulher daquela época aprendendo a ser prendada. Já estava ficando velha e encalhada antes de completar sua segunda década de vida. Mas com padrinhos que se prezem não ficaria encalhada. Fizeram seu casamento com o bom partido da cidade. Um farmacêutico – quem dominava remédios naquela época era mais que médico. Era um deus. – viúvo com três filhos pequenos. Por sorte ou por destino ela se apaixonou pelo moço farmacêutico. Maria Lúcia me confidenciara muitíssimos anos depois que já espichava o olho para o tal viúvo. Menina saidinha para a época. O homem era casado. Pobre moça deve ter rezado muito por penitência.

MARIA LÚCIA. Uma mulher casada com três filhos pequenos para criar sem nunca ter estado grávida. Deste estado ela não pode ficar livre muito tempo. A tarefa de cobrir o santuário para que os santos não presenciassem um momento de maior intimidade do casal era do viúvo – agora não mais viúvo. Maria Lúcia ficou grávida várias vezes. Perdeu alguns bebês. Contudo, conseguira aumentar os filhos do farmacêutico – melhor chamá-lo assim já que não se trata mais de um viúvo – para doze. Por um apenas talvez o casal tivesse tido mais sorte na vida. Porém, Maria Lúcia não era mulher de acreditar em sorte. Maria Lúcia acreditava era em Deus. Sobre Deus e rezas sua madrinha lhe ensinara também.

MARIA LÚCIA. Agora mulher dona de casa grande com empregados e filhos correndo para todo lado. As coisas poderiam ter saído melhor mas o marido farmacêutico de Maria Lúcia era asmático. Ao casar, dias e noites passaram a ser iguais para ela. Depois das bodas de prata, as coisas ficaram mais difíceis para o farmacêutico de Maria Lúcia. Sua asma não dava descanso. A essa época, já existiam jovens médicos na cidade. Um deles aconselhou o casal a trocar de cidade. O clima na capital era mais apropriado ao problema do ex-viúvo.

MARIA LÚCIA. Moradora da capital. Os problemas com a asma diminuíram. No entanto, os remédios haviam maltratado o coração de seu farmacêutico por demais. Ele morrera do coração em plena copa do mundo e em dia de jogo do Brasil. Maria Lúcia tornara-se, então, viúva. Viúva, mãe, avó, bisavó, prestadora de serviços a comunidade, rezadora plena e convicta. Essa passou a ser a sua condição de vida. Santa Maria Lúcia. Quem poderia discordar disso? Não há ser humano capaz de tal feito. Maria Lúcia aprendeu a rezar e rezava. Dia e noite, noite e dia. Ensinou filhos, netos e bisnetos o mesmo ofício. Nenhum deles ousou não seguir a lição.

MARIA LÚCIA. Aprendera e ensinara muitas coisas. Até mesmo sem querer ela entregava todos os dias aos que tinham olhos para ver, uma lição. Maria Lúcia, mulher perfeita e intocável, ficou doente. No processo de tratamento desafiou os médicos. Fez milagres acontecerem. Entretanto, ela precisava ir. No dia anterior a sua partida, entregou seu espírito ao Pai. Neste mesmo dia pensei em ficar ali a noite toda. Disseram-me que não era necessário. Ela mantinha os olhos fechados enquanto rezávamos ao pé de seu leito. Havíamos entrado nos anos 2000 e a família se fazia cheia de médicos. Nenhum farmacêutico. Um dos médicos chegou e nos mandou ficar preparados. Beijei sua mão e saí. Dormi. Na manhã seguinte, meu despertador foi o telefone. Maria Lúcia havia morrido. Corri para o hospital e lá encontrei Maria Lúcia sendo preparada para o seu funeral. Tratei de observar se as suas recomendações estavam sendo seguidas. Estavam. Questionei um fato. Besteira. Realmente, aquilo não fazia diferença. Não mais.

MARIA LÚCIA. Deitada inerte, ainda não tinha as mãos cruzadas. Em um dos braços ela ainda trazia um de seus companheiros de vida toda. Um terço. Esse era bento pelo papa. Terço de pérolas trazido diretamente de Roma, na Itália, por ocasião de seu aniversário de oitenta anos. Era presente de sua filha mais nova, filhos e netos. Esse terço o acompanhara durante todo o seu calvário. Não posso dizer que era seu amuleto. Maria Lúcia só acreditava em Deus. Aquele terço era a prova da sua devoção e fé no Senhor. Na finalização de sua caracterização para o velório, o terço italiano foi trocado por outro. Por um rosário, na verdade. O rosário franciscano. Maria Lúcia era franciscana. Franciscanos fazem votos e pedem uma preparação específica para esse dia. Ela vestia sua toga marrom escura e levava o rosário franciscano no peito.

MARIA LÚCIA. Mantinha o rosto sereno. Um pouco assustada por trás de algumas pessoas eu a olhava. Havia perdido a coragem de tocar sua pele. Talvez para não constatar a frieza que caracteriza os defuntos. Do alto, por entre as pessoas, uma mão me estende o terço que Maria Lúcia trazia no braço ao suspirar pela última vez. Agarrei-o como quem agarra água no deserto. Depois, pensei em entregar-lhe a sua filha mais velha. Desisti. Por egoísmo ou por preferir acreditar que o terço me veio como um presente dos céus. Eu entregava Maria Lúcia. Ganhava o terço bento por João Paulo II. O corpo desceu. Não contei os palmos. Voltei para casa.

MARIA LÚCIA. Não se encontrava. Contei que guardara o terço. Deixaram-me com ele. Sete chaves e o terço lá. Quieto. Estar com aquele terço em mãos era a concretização de um enorme vazio que ficara. Três ou quatro dias se passam. Busco o terço. Só quero olhar para ele. Não rezo mais. Emudeci ao trocar a ordem das ave-marias – que ninguém me escute. Está lá. Quieto. Muito bom. Não sei se a vida segue ou se a gente é que segue com ela. Eu segui. O tempo perdeu-se, eu quis olhar o terço outra vez. Ele estava lá. Debaixo das sete chaves, ele estava lá. Estranhamente estranho. O terço não tinha luz. Havia ficado escuro, opaco. Não era mais aquele terço brilhante de antes. Parecia ter perdido a vida. Era isso. Com Maria Lúcia aquele terço tinha vida. Sinal? Oxidação? Pérolas oxidam?!

MARIA LÚCIA. Ainda é. Nunca deixou de estar. Peguei o terço e o examinei. Não havia nada errado com ele. O que havia de errado era a coloração acobreada que as pérolas ganharam. Não havia porque elas ficarem daquele jeito em tão pouco tempo. Assustei-me e intriguei-me. Pérolas não oxidam. Porém, eu descobri que é o corpo feminino que dá vida a elas. É a suave oleosidade do corpo feminino que ativa o lustre das pérolas. Era verdade. Maria Lúcia dava vida a elas. Aquela vida viva que o terço tinha. Pois, no meu braço, mesmo depois de limpas as pérolas do terço não recuperaram o brilho que tinham no braço de Maria Lúcia. Triste, mesmo acreditando que as pérolas do terço perderam sua vitalidade para que Maria Lúcia falasse comigo, pendurei o terço junto ao crucifixo que ganhara dela na ocasião de meu casamento. Durmo e acordo olhando para ele naquela coloração acobreada. Talvez, ele seja um terço mágico – é bento pelo papa! Quem sabe um dia ele volte a ter vida? Quem sabe no dia em que eu conseguir reordenar as ave-marias?




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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sonhos e pedras




A vida é feita de sonhos. Há quem não canse de repetir essa frase da sabedoria popular. Mas eu vou ousar dizer que o sábio que é sábio mesmo sonha acordado e sabe aproveitar cada segundo desse sonho.

O que nunca foi plano virou sonho – sonho que se sonha acordado. Há uma diferença entre um plano e um sonho. Um plano, diz Aurélio, é um conjunto de ações e medidas a serem tomadas. Um sonho, normalmente esta associado a imagens desconexas e confusas que chegam a nossa mente enquanto estamos dormindo – sonho dormido. Quando estamos acordados, digo eu, o sonho é a realização de uma graça. Graça que, muitas vezes, não foi sequer pedida. Eu tive um sonho que sonhei acordada e eu soube aproveitá-lo em toda a sua essência. Eu já estava lá. Nada poderia mudar minha condição.

Um dia perdido no calendário, inverno de janeiro de 2009 na região de Castilla y Leon, Espanha. Encontro-me diante das muralhas de 2,5 quilômetros de extensão, mais ou menos 12 metros de altura e 88 torres que guardam a cidade de Ávila. São as muralhas medievais mais antigas existentes no país. Por detrás de seus muros, uma cidade guardada como quem guarda um tesouro. Estar ali representa muito mais que um momento para tirar fotografias e colecioná-las em uma gaveta, em um álbum ou na memória de um computador. Estar diante das muralhas de Ávila significa estar vivendo um sonho que se sonha acordado. É estar prestes a reviver páginas de um livro de História. É ter todas as suas memórias e tradições espalhadas pelo chão que há em você. É viver um lugar onde o velho convive com o novo em harmonia. É ver o novo e trazê-lo para o velho que há em você.

A cidade de Ávila fica próxima a Madrid, capital da Espanha e, também, próxima a cidade de Salamanca, que faz parte da mesma região de Castilla y Leon, onde residia, na época, o meu único irmão. Eu estava em Salamanca por ocasião do nascimento de sua primeira filha – la españolita de mi corazon. Enquanto o bebê não nascia, aproveitamos para conhecer a região. Viajamos de carro e a cada lugar que visitávamos muitas surpresas e a mala mais cheia de novidades e experiência.

Entre coisas que só posso guardar comigo, estão aquelas que aprendi e que posso dividir. As muralhas de Ávila foram construídas no final do século XI por Raimundo de Borgonha a pedido do rei Alfonso VI de Castella. Sua intenção era repovoar e fortificar as cidades de Ávila, Segóvia e Salamanca. Trata-se de uma construção militar românica que juntamente com suas igrejas foram tombadas como patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO. É a única construção militar cristã que se conserva exatamente como foi construída. Por isso, experts a consideram a maior e mais conservada muralha da Europa. Ela representa o maior e mais completamente iluminado monumento do mundo.

A cidade de Ávila fica situada sobre uma colina aos pés da serra de Guadarrama. É a cidade de maior altitude da Espanha. Seus primeiros habitantes foram povos de origem celta. Hoje, tem cerca de 50.000 habitantes. Ávila foi berço de Santa Terezinha, fundadora das Carmelitas Descalças. A cidade sobrevive de seu turismo, comércio, do artesanato e do fabrico de doces tradicionais.

Foi em Ávila, diante de suas muralhas, uma das vezes em que senti o meu coração bater mais apertado. A neve caia forte com vários chumaços de algodão. Tudo coberto do branco mais branco. Dias corriam soltos desde que viajara para a Espanha. Faltavam algumas pessoas comigo... Pensei um pouco. Escrevi seus nomes sobre a neve e adentrei os portões de Ávila como quem entra nas páginas de um livro ou como quem entra em uma cena de filme de fantasia, romance e aventura.


Nota:

1. Texto escrito para a segunda postagem coletiva do blog Espaço Aberto.

http://um-blog-para-todos.blogspot.com/


2. Foto de acervo particular.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Corpo-matéria


Primeiros raios de sol e eu acordo. Mal posso esperar para acertar o focinho de quem deixou essas cortinas abertas. Pretendia dormir bem mais. Principalmente depois do jantar magnífico que tive ontem. Esbaldei-me como um rei. Quem sabe como um homem da idade média. Sem pensar em quilos a mais, sem pudores à mesa e como se aquela fosse a minha última refeição. De entrada, uma sopa deliciosa de aspargos com croûtons. No prato principal, – se é que eu percebo essas diferenças. Sei que como o que me vão colocando. - filé de frango a parmegiane – agora o prato é italiano. Não entendo essa salada. Já disse! Vão colocando e eu vou comendo. Esplêndido! Não me interessa o que há de sobremesa. O meu fraco são os queijos. Havia queijo. Queijo suíço. Muito Gruyére regado a muito vinho branco seco Vouvray lá do vale Do Loire. Vinho Francês. Alguém nasceu na França aí? Não importa. Eu como e bebo. Bebo e como. Certamente por isso eu não me lembre de como vim para casa. Estava só. Disso eu lembro. Mas que sol é esse que tanto insiste em me fazer abrir os olhos? Esse vento... Movimento... Meu quarto mais parece uma esquina da Avenida Brasil. LOUCO!!! Buzinando no meu ouvido a essa hora da manhã? Chega! Vou levantar. Mas o que é isso? Como permaneço deitado se já estou de pé? E que lugar mais descampado é esse? Onde foi parar minha cama King Size? Meu travesseiro de penas de ganso? Minhas cortinas de cetim? Como pode todo o seu mundo virar de ponta cabeça de um segundo para o outro? Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Calma, Leopoldo! Por que não enxergas o que está às vistas? Aquele... É o meu corpo estendido ao chão. Estirado ao chão na esquina por onde tanto passei. Já está fedendo. Consigo sentir e ver a cara de repugnância das pessoas. Agora mais que nunca eu consigo ver isso. Sou um corpo em putrefação para o desejo de muitos que sonharam em me vê ver assim. Já tramaram a minha morte. Não foi a primeira vez. São capazes de fazer isso. Esses humanos mesquinhos e egoístas. O jantar... Foi tudo uma armação. Como fui idiota! Bem que senti o queijo com um gosto mais amargo. E o vinho? Apenas para fazer o veneno descer mais suave. Tolo Leopoldo! Agora nada mais te resta. A não ser um corpo estendido no chão diante de pessoas que passam e deste sol que a cada minuto fica mais quente. Carros seguem. Nem um vai me guiar um cortejo. Teu corpo vai ficar aí estendido. Se desmanchando ao sol, sendo comido por esses vermes que já tomam conta de ti – não perdem tempo esses aí. Talvez, a vida seja isso mesmo. Seize the Day. Amanhã poderá não haver mais dia e você poderá terminar como eu. Vagando sem tempo e espaço enquanto um corpo fica estendido ao chão. Na tal mala que dizem a gente carregar quando deixamos esse mundo terreno, não vem apenas amor não. Vem desamor, ódio, pecados, arrependimentos. Meu maior arrependimento? Não ter perpetuado a minha espécie de roedores. Não contribui para uma nova versão da Peste Negra. Assim, morro. Morro porque já morri. Levo comigo o que não pude deixar.





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