A mulher e seu ato beneficente
Sacode a cabeça e deixa escapar a sua democracia. A democracia das palavras e das atitudes coordenadas. Mulher que é mulher de verdade, fala suave, empurra carrinhos de supermercado e corre por entre os dias. Então faço esse triatlo. De mim para mim, ponte de compreensão, acordo ouvindo Instant Karma e adormeço aos pés de deus. Retirante de imagens de revistas de auto-ajuda, sou marcha ré e azul, assim como a colcha de cama que comprei em minha última viagem. Viajei sobre as ondas perceptivas do Kerouac e encontrei gente varrendo teto e costurando p'ra fora. Triste fazer isso. Triste também ver criança partindo. Elas partem e nós combinamos o horário da conversa fiada. Cada um com seu punhado de alegorias para enfeitar vidas. Mas sou mulher e não outro ser. O que esperar de um ser que nasceu regido por vênus e marte em sua décima casa lunar? Essa linguagem me irrita, mas é assim que um amigo me resume. Odeio ser resumida, mas amigos podem tudo - só não podem nos sufocar. De sufoco não vivo e não entro quando sinto que algo me repele. Certa vez, toda arrumada, mulherzinha e linda, cheguei em tal lugar, olhei ao redor e caí fora. Senti um certo arrepio - o que me fez voltar p'ra casa. À força, não entro nem em igreja. Mas me socializo, me irrito e tenho medo disso e daquilo. Medo de barata, medo de mar cheio, medo de atravessar rua, medo de quem tenta escrever certo, medo de falar errado também. Ando atarraxada à gramática e nem me venha falar errado - corto na hora e encho a tarde falando dos vocábulos. De nada me adiantou ler a Pluralidade Lingüística. Busco outra roupa - hora de sair de novo. Outro triatlo - médico, mãe e ioga. Distorço o que penso naquele chão com outras mulheres que também se desmancham em competições. Esse mundo é assim e nada irá mudar. Cães serão sempre cães, jardineiros serão sempre preguiçosos e maridos serão sempre compreensivos quando quiserem dominar as feministas que não saem sozinhas. É um mundo grande mesmo, cheio de respostas e lojas em liquidação. Pertenço ao intermédio e se não há tal palavra, acabo de criar. Sou sempre educada, me despeço e limpo os pés antes de sair. Não carrego sujeira dos outros comigo. Posso até ser exemplo, mas não me segue à risca. Sempre refaço o que digo e minhas ações não correspondem com o meu signo. Ser contraditório e daí? Todo dia acordo nova, embora ouça sempre Instant Karma, acordo com uma nova vontade. A única ação que me é repetida e me é necessária é escrever. Eis o meu ato beneficente para mim mesma. São doações dia e noite - via Funchal e via láctea. Escrevo e a rotação de meus planetas regentes que me suportem. Sou o ser mais contraditório que há.
Alice
Comício de Leitora
Bom, me vi aqui e ali nessa "mulher e seu ato beneficente", muito bem escrito e trabalhado. Mas eu sou mulher que dá chilique quando a cena pede e, aí, falo alto. Mas essas cenas são sempre curtas e, normalmente, acontecem com a mesma freqüência com que vemos duas luas no céu. Falo alto também quando vendo aula. Meus alunos, às vezes, parecem criança no parque. Ah! Os carrinhos de supermercado cabem ao meu marido. Ele tem mais força física que eu. Eu sigo a ponte da compreensão, sim. Não de tudo. Não compreendo quando se joga Vida fora. Acordo sempre ouvindo a música do dia. Acho que é isso que me anima e renova. Não suporto quando o som se repete. Parece que não saio do lugar - cada louco com a sua mania. Muita coisa me irrita ainda. Talvez, porque eu coma pouco das bolinhas de açúcar. E, como mulher, desisti do meu signo cedo. Ele sempre mentiu pra mim. Não gosto de sufoco, muito menos de amigo que sufoca. Adorei a idéia de limpar os pés antes de sair de um lugar. Eu costumava me sacudir como cachorro molhado mas só limpar os pés, é mais clássico e mais parecido com o meu estilo. Sou mais democrática que socialista. Sou perseguida apenas pela gramática e pelos medos que ainda me restam. Entretanto, pavor eu só tenho de quem fala "elado" e escreve "crássico". Essa história do triatlo é que me cansa. Mas Ele está lá - fui escolhida pelo Amor mais perfeito. Por isso, devo confessar que acredito, ainda, em um mundo diferente. Todo pintado a mão com caixa de lápis Faber-Castle, 36 cores. A única coisa que mudaria nesse mundo é que eu o colocaria dentro de um caleidoscópio. Para que todas as pessoas pudessem ver um mundo ainda mais colorido a cada vez que olhassem para ele. As doações "dia e noite" são fundamentais para esse mundo novo. Começando por cada um de nós mesmos. É o nosso "ato beneficente" pessoal e coletivo. Acredito ainda que só o Amor - vivido e compartilhado - é que pode salvar esse nosso velho mundo. As contradições são como as voltas que uma moeda dá quando cai ao chão. Elas giram mas permanecem inteiras. Assim como os planetas de meu sistema solar que descrevem, dentro de outras linhas, o que eu sou enquanto estou...
Zélia
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