Hoje o dia está mais branco que os outros dias. Talvez porque ela esteja farta de ouvir coisas que não cabem nela. É dia da mulher – não seriam todos os dias? Mulher se descobriu cedo. Ainda criança, fazia seus planos de menina que desagradava Santo Antônio. Estudava, sabia que se formaria e teria uma carreira. Em casar e ter filhos sempre pensou. Principalmente nos filhos. Só não deixava de acreditar na sua tia quando dizia que “homem não é tudo para uma mulher”. E não é! Nem os filhos são. Contudo, essa vontade de ter filhos... Nasceu e cresceu com ela. Quem sabe se não foram as brincadeiras com bonecas e o fato de ela, filha e prima mais velha, ter tido que brincar com bonecas e bonecos de verdade? Agora, entende porque sua prima não quer a filha brincado de ser mamãe, de cozinhar ou de passar roupa. Anna Beatriz brinca com pinturas, quis fazer balé desde novinha, faz teatro e tem livros como amigos de todas as horas. Frequenta biblioteca infantil como adulto não frequenta bibliotecas preparadas para eles. A mulher do dia branco, estando adulta, cumpriu sua obrigação de mulher uptodate antes de cumprir a sua obrigação de mulher old fashioned – ela prefere esses termos. Cabem melhor nela. Fez a profissão primeiro. O marido, depois. Filhos não! Continua brincando com as bonecas e bonecos que passam por ela. A parte que faz dela mulher uptodate está falando mais alto. Se ela tivesse nascido no século XIX, ganharia rótulo de sufragista, teria tirado o sutiã, gritaria em praça pública. Antes tais atitudes tivessem resolvido a questão feminina. Ao menos, foi um começo. Ora! Ser parideira, tomar conta de marido, filho, esquentar a barriga no fogão, lavar e passar roupa sem poder decidir quem vai ser o cretino que, em seu lugar, vai mandar mais do que ela só porque tem cargo político? Não! Ela quer votar - raramente acerta. Mesmo não nascendo no século XIX, tira seu sutiã todos os dias e grita em praça pública sempre que precisa. O passo preciso é que é preciso acertar. Mulher uptodate trabalha mais que mulher old fashioned. Ganha menos. Continua passando roupa, esquentando barriga, escorando marido, dando banho em menino sujo, chorando escondido. Foi-se o tempo de uma reviravolta. Entretanto, não há necessidade de guerra armada. A guerra pode ser condimentada. O tempero certo, na medida certa para cada prato. Nada mais de “Feliz dia das Mulheres”. Isso parece coisa feita apenas para dizer que nos lembramos de veteranos de guerra, por exemplo. E aí? Para que eles servem e o que é feito deles? Seu dia é todo dia. É Mulher todos os dias. Inteira. Embora, às vezes, aos pedaços. De pedaço e pedaço, sempre faz o que quer. Decidiu escrever e aparecer. Foi escritora antes de ser muitas coisas. Só não antes de ter sido leitora. Sempre leu tudo e não leu nada. Escrever, ela escrevia até cansar. Agora, a mulher desse dia branco lê menos e escreve menos porque vive mais. Avalanches não são seguradas com as mãos. Assim, ela vai construindo o mosaico que é com peças que recolhe no caminho. Nada a escapa. Vê longe e fala sem vírgulas. É Apolo e é Eros. Hera em todas as estações. Ela tem um Amor, um anjo e várias canções. Vivendo, é Mulher. Tirando o sutiã, é militante. Amando, é amante. Escrevendo, é escritora. Ensinando, é professora. De todas as formas, há um desejo apenas de mostrar as pessoas um mundo de janelas abertas. Tem paredes pintadas, se vê todos os dias no espelho mas só chega há seu tempo.
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