sábado, 8 de novembro de 2008

Leio o que escrevo porque sou Eu *

“E de nada vale fugir
E não sentir mais nada”
(Renato Russo)


Dia diferente porque era outro dia. Não o de ontem. Início de minha viagem para casa. A janela do ônibus mostrava a paisagem que sempre me mostra cores novas. Enquanto eu admirava o mar azul de águas claras e límpidas, a minha imaginação alçava vôos cada vez mais altos. Quisera ver aquele mar imenso cobrir toda a cidade. Seria muito mais interessante viver como os peixes. Nadando num balé de vai-e-vem e saltando, vez ou outra, como fazem os golfinhos, seria muito mais agradável cumprir com nossos afazeres diários. Sempre sonhei assim. Com um mundo de águas claras em que eu pudesse usar colares de conchinhas catadas por mim mesma. Se o perigo surgisse, seria fácil: aprenderíamos truques com o amigo polvo, rei em mimetismo. No mais, contaríamos com o arco de Posídon para nos proteger. Já havia pensado em reformas para a minha casa submarina quando algo desviou meu olhar. O mundo agora era outro. Era de letras. Me vi dentro de um enorme caldeirão e rodeada por letrinhas coloridas. Antônio de Lima era o nome na capa do livro. A primeira página estampava um rosto que refletia o olhar de quem o via. Era um livro de memórias. Passava cada página com o esmero de quem segurava uma relíquia em suas mãos. Assim como os peixes, ele também dançava seu balé de vai-e-vem pelas linhas do livro. Eu queria saltar dentro do livro. Queria saber o que contavam aquelas linhas. Vi poemas sobre morangos e trens. Vi contos sobre um cachorro e amores. A capa também exercia um grande fascínio sobre ele. Um dos passos do balé era voltar e parar na capa. Uma imagem envelhecida de uma árvore ainda frondosa e de um banco vazio. Era daqueles de antigamente. De madeira maciça. Imaginei vê-lo sentado ali ainda jovem. Nas mãos, alguns de seus escritos em folhas de papel que lia com a mesma fome de hoje. Um beija-flor que voava por perto se admirou com aquele gesto de coragem de quem acredita naquilo que faz e perguntou:


"– Por que lês o que tu mesmo escreves?"


Ele respondeu:


"– Leio o que escrevo porque sou Eu. Todo escritor verdadeiro é semeador. O semeador planta porque acredita em suas sementes. O escritor deve acreditar em suas letras."


O beija-flor, então, continuou o seu balé de beijar flores. Era suficiente o que ouvira. O jovem Antônio sonhava em ver seus escritos guardados dentro de um livro. O Antônio daquele dia segurava seus escritos nas mãos. Não soltos. Dentro de um baú do tempo. Morreria escritor de um livro só mas morreria escritor. Ninguém jamais poderia lhe perguntar se ele não tinha livro publicado.



Zélia




* Fala da personagem não identificada em “1826” por Letícia Palmeira a quem dedico este texto.


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