domingo, 30 de novembro de 2008

Precisa-se de passagem para o "asahi"


Alguns caminhos nunca deixam de se cruzar. Inesperadamente, eles se encontram e se reencontram sem que possamos agir sobre eles. Os gregos explicam o fato dando a ele no nome de Destino, a parte que cabe a cada um de nós, simples mortais.
Mesmo distantes, Julynha e Mariazinha, continuaram perto. Julynha era aquela criança espevitada. Cabelos negros e ondulados, pele branca como a neve que nunca viu, bochechas rosadas como a manga que tanto gostava. Se destacava na escola por andar de um lado ao outro sem parar. Falava com todo mundo e era a melhor amiga de Mariazinha. Sua melhor amiga, era quieta. Cabelos castanhos de suaves cachinhos nas pontas. A pele de Mariazinha era mais morena. O que brilhava em seu rosto era o sorriso largo que vinha de sua boca cor de morango e que é sua marca registrada até hoje. O destaque na escola vinha de suas notas. Mariazinha não era de falar com todo mundo. Só o necessário.
Julynha contava seus sonhos a qualquer um. Queria cantar na televisão. Ensaiava na escola, em casa, na rua. Era a perfeita “Sandra Rosa Madalena”! Mariazinha guardava os sonhos pra si e para as estrelas. Só pensava em ser feliz. Brincava de namorar o primo e já pensava em casar, ter filhos. A amizade das duas crescia. Compartilhavam a escola, eram vizinhas de rua, tramavam juntas. Em dia de chuva, combinavam de enfiar os pés na lama, ao voltarem pra casa, para não terem como ir à escola no dia seguinte. Esqueciam que colocar sapatos e meias atrás da geladeira era costume na época. À noite, esqueciam tudo e brincavam na rua. Cantavam, trocavam bonecas, jogavam bola e academia. Para a brincadeira não acabar logo, cada noite, uma tinha que socorrer a outra em alguma coisa. Ora a música não tava bem ensaiada, ora uma boneca quebrava a perna. Sem perceberem, o ano terminou. Mariazinha mudara de escola e passara a morar em um bairro próximo. Já não havia mais como tramar para não ir à escola ou para a brincadeira durar mais.
Mariazinha passara a ter uma brincadeira mais séria, a partir dali. Tinha que cuidar de si e de mais alguns. Sempre soube que iria cursar a Universidade. Não era sonho mas certeza. Algo como se diz em inglês, taken for granted. De tantas coisas que pensou em fazer, Mariazinha passou a ser orientadora educacional. Conhecedora de várias línguas e cosmopolita, virou Mulher. A felicidade para ela, agora, tinha várias direções. Até casou com um rapaz que rejeitara, a princípio, mas que era uma versão up to dated de seu pai. Não teve filhos. Tinha crianças demais a sua volta. Além disso, gostava de viver namorando o marido e conhecendo outros lugares que não só o jardim de sua casa. Mariazinha nem varria seu jardim. Deixava que folhas e flores vivessem livremente enquanto viajava as quatro estações.
Julynha nunca saíra de seu bairro. Não virou cantora e se parece mais com a Amélia “que era mulher de verdade” e “sem vaidade”. A mesma pele branca mas pálida. Os cabelos cresceram e perderam as ondas. Hoje, parece ter enterrado seus sonhos. Não anda mais de um lado ao outro, quase não sorri e só fala o que lhe é perguntado. Casou com o franzino do Heraldo. Nosso vizinho e que não tinha nada do Sr. Agenor. Tem três filhos. Até onde consta, não cursou Universidade. O lugar que visita é só o seu jardim. Em todas as estações. Quando está lá, é sempre com a vassoura nas mãos. Não gosta de folhas secas ao chão. Nem de flores nas plantas. Estão todas em seu jarro de vidro azul em cima da mesa de jantar. Não se sabe mais o que ela espera nem se conhece felicidade. Na maior parte do tempo está só com sua vassoura.
Dia do soldado desconhecido. Seus caminhos se cruzam outra vez. Mariazinha vai ao salão de beleza. Havia cansado do visual que usara há algo em torno de seis meses. Julynha estava em seu jardim de vassoura nas mãos e cabelos iguais aos de tanto tempo. Elas se falaram. Mariazinha, abismada com a amiga e sua vida tão de todos os dias. Julynha, abismada porque a amiga camaleoa ainda queria mais mudanças. Elas sorriram e o sorriso de Julynha, embora fosse o mesmo de outros tempos, estava em olhos diferentes. Olhos que pareciam pedir socorro. Entretanto, Julynha continua agarrada a sua vassoura. Mariazinha sai daquele encontro pensando no que fazer para socorrer a amiga. Talvez, seja preciso estender-lhe a mão. Talvez, essa seja mais uma parte do quinhão do Destino das duas. Sol e chuva que se complementam. Felicidade é o que cabe a cada um mas é preciso que se descubra a cor que ela tem.


Zélia

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