sexta-feira, 14 de maio de 2010

Corpo-matéria


Primeiros raios de sol e eu acordo. Mal posso esperar para acertar o focinho de quem deixou essas cortinas abertas. Pretendia dormir bem mais. Principalmente depois do jantar magnífico que tive ontem. Esbaldei-me como um rei. Quem sabe como um homem da idade média. Sem pensar em quilos a mais, sem pudores à mesa e como se aquela fosse a minha última refeição. De entrada, uma sopa deliciosa de aspargos com croûtons. No prato principal, – se é que eu percebo essas diferenças. Sei que como o que me vão colocando. - filé de frango a parmegiane – agora o prato é italiano. Não entendo essa salada. Já disse! Vão colocando e eu vou comendo. Esplêndido! Não me interessa o que há de sobremesa. O meu fraco são os queijos. Havia queijo. Queijo suíço. Muito Gruyére regado a muito vinho branco seco Vouvray lá do vale Do Loire. Vinho Francês. Alguém nasceu na França aí? Não importa. Eu como e bebo. Bebo e como. Certamente por isso eu não me lembre de como vim para casa. Estava só. Disso eu lembro. Mas que sol é esse que tanto insiste em me fazer abrir os olhos? Esse vento... Movimento... Meu quarto mais parece uma esquina da Avenida Brasil. LOUCO!!! Buzinando no meu ouvido a essa hora da manhã? Chega! Vou levantar. Mas o que é isso? Como permaneço deitado se já estou de pé? E que lugar mais descampado é esse? Onde foi parar minha cama King Size? Meu travesseiro de penas de ganso? Minhas cortinas de cetim? Como pode todo o seu mundo virar de ponta cabeça de um segundo para o outro? Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Calma, Leopoldo! Por que não enxergas o que está às vistas? Aquele... É o meu corpo estendido ao chão. Estirado ao chão na esquina por onde tanto passei. Já está fedendo. Consigo sentir e ver a cara de repugnância das pessoas. Agora mais que nunca eu consigo ver isso. Sou um corpo em putrefação para o desejo de muitos que sonharam em me vê ver assim. Já tramaram a minha morte. Não foi a primeira vez. São capazes de fazer isso. Esses humanos mesquinhos e egoístas. O jantar... Foi tudo uma armação. Como fui idiota! Bem que senti o queijo com um gosto mais amargo. E o vinho? Apenas para fazer o veneno descer mais suave. Tolo Leopoldo! Agora nada mais te resta. A não ser um corpo estendido no chão diante de pessoas que passam e deste sol que a cada minuto fica mais quente. Carros seguem. Nem um vai me guiar um cortejo. Teu corpo vai ficar aí estendido. Se desmanchando ao sol, sendo comido por esses vermes que já tomam conta de ti – não perdem tempo esses aí. Talvez, a vida seja isso mesmo. Seize the Day. Amanhã poderá não haver mais dia e você poderá terminar como eu. Vagando sem tempo e espaço enquanto um corpo fica estendido ao chão. Na tal mala que dizem a gente carregar quando deixamos esse mundo terreno, não vem apenas amor não. Vem desamor, ódio, pecados, arrependimentos. Meu maior arrependimento? Não ter perpetuado a minha espécie de roedores. Não contribui para uma nova versão da Peste Negra. Assim, morro. Morro porque já morri. Levo comigo o que não pude deixar.





Image by Pesare On DeviantArt