quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

canção dos temas

Era noite e tarde... Tarde para os que cedo tinham que levantar. Júlia tinha que acordar cedo e fazer o que deveria ser feito: Limpar, cozinhar, cuidar e ser a forma perfeita para a qual tinha sido moldada. Tinha que ser mulher. Mulher das canções. Em sintonia com seus filhos, marido, familiares e pertences. Incluindo também vizinhos, donos de mercadinho e os observadores. Embora não se preocupasse com opiniões que não fossem atingir sua família, tudo estava bem. Ela estava bem em sua vida pré-moldada. O marido, que trazia a marca traiçoeira do destino, bebia como seu pai. Tudo era motivo para um gole de algo que fosse a base de álcool. Tudo típico: Jogos, reuniões de fim de semana e futebol com outros pré-moldados. Ela já se habituara a usar essa palavra desde um dia que ouvira em um programa de TV, um homem falando em cozinhas pré-moldadas. Júlia, com a pouca instrução intelectual que possuía, fez a incrível descoberta de que, algo pré-moldado viria a ser algo que foi feito para um objetivo. E eis que descobrira, aos 34 anos, o objetivo do marido. Ser um homem igual a outros que por sua vez, carregavam adjetivos de outros. Nada era novidade. Nem sua história, nem seus filhos, nem suas vizinhas. Tudo era repetição. Ao olhar o álbum de fotografia de sua mãe, bastava apenas que as roupas dos personagens fossem trocadas. O palco era o mesmo. A canção era a mesma. Sua casa cheirava a água sanitária - tudo limpo e a bagunça usual de quem tem três filhos. Ela escolhera os móveis, aliás, aceitou-os de presente. Nada era seu de verdade. Nada tinha o seu gosto. Os filhos eram amados, porém tornaram-se pré-moldados também. Com suas bocas cheias de palavras grandes, na idade em que se encontravam, nada poderia Júlia fazer. Apenas deixá-los limpos e usar talheres durante refeições em casa de amigos. Ser o que havia sido treinada para ser. Cheirar a gordura e deitar de bruços. Seus dias eram moldados e politicamente iguais. Tivera a sorte de não chorar e não reclamar. Viver no silêncio da aceitação, dentro da Não-Alegria Feliz e freqüentar simbólicas reuniões na igreja de sua comunidade. Havia sido pré-moldada e qualquer peça fora do lugar, tiraria tudo do ritmo, do desafio de ser A Mulher Do Marido que lhe dera Filhos para se distrair. Cantava para dentro a melodia de amar a vida e viajar sem destino. Olhava o céu à noite e ver estrelas cadentes lhe trazia a sensação de que a janela de sua cozinha era um belo quadro de animação. Estrelas Cadentes e roupas para guardar. Alguns são médicos, professores, amantes, pesquisadores da alma humana, deuses, poetas, motoristas e muitos são o que ainda está por vir. Alguém precisa ser quem Júlia era... mãe, esposa e observadora de estrelas. Alguém precisava deixar as ambições e lembrar que essa vida não é a última. Não é o fim da linha - a canção dos temas continua.

Alice