quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Cochilo de Deus



Minha amiga me ligou hoje bem cedo. Me acordou dizendo que precisava contar a fofoca do dia – um pouquinho menos e ela quase me contava a fofoca de ontem. Totalmente eufórica ela me contava sobre a Vera que acabara de chegar da Alemanha. Vera costumava sair conosco no tempo da escola. Éramos três. Eu, a Martinha e a Vera. Às vezes, éramos mais - desde que arranjássemos um namoradinho. Quando entramos na faculdade, a Martinha e eu, a Vera se afastou um pouco de nós. Na mesma época, ela engravidou do Osmar e os dois se casaram. Quando terminamos a faculdade, a Vera e o Osmar tiveram seu terceiro filho. Mais alguns poucos meses e os dois estavam separados. A Vera e os seus três filhos foram morar no interior com a mãe dela. Ela precisava de alguém para ajudar com as crianças. Além do mais, a grana que o Osmar dava a ela para o sustento das crianças mal dava para comprar o leite que eles tomavam e as fraldas que sujavam. Mesmo com vidas tomando caminhos tão diferentes, nós nunca deixamos de nos ver. No primeiro encontro depois da separação a Vera estava desolada. Três filhos e de volta a casa da mãe. Dinheiro para as nossas noitadas, não via nem de longe. E mesmo que tivesse dinheiro. Dona Carminha não ficaria com os netos para a filha ver a noite virar dia. A vida da Vera virara um tormento. Ela, não era para menos, se desesperou. Naquela cidadezinha de nada, como ela iria ganhar o dinheiro suficiente para criar os filhos decentemente? Coitada da Vera! Algumas pessoas podem até dizer que isso foi bem feito para ela. Hoje em dia ninguém mais engravida sem querer. Todo mundo sabe o que fazer para evitar uma gravidez. E a Vera, além de não evitar a primeira gravidez, engravidou mais duas vezes. Uma atrás da outra. Vai ver o Osmar se esqueceu de comprar uma TV para a casa deles. Pobre Vera. Morro de pena dela. Não somos obrigados a acertar todas as cartadas na vida. Quando a Vera já estava para perder os cabelos da cabeça, ela conheceu a Luzinete Schneider. Bem, antes de ir morar na Alemanha, Luzinete Schneider era, na verdade, Sandro da Silva. Os dois estudaram juntos no grupo escolar da cidade onde moravam. Vera sempre teve certeza da homossexualidade do neguinho Sandro. O que ela jamais desconfiou era que Sandro iria virar travesti de luxo na Alemanha e viria a se chamar Luzinete e, muito menos, ter sobrenome alemão. Mas sabe que a sorte de Vera mudou completamente depois de ela encontrar com a Luzinete? Sandro, quer dizer, Luzinete voltara àquele interior para o enterro da mãe. Luzinete havia gastado tudo o que o dinheiro poderia pagar para livrar a mãe daquele câncer maldito mas não teve jeito. A velhinha morreu. Sorte da velhinha é que ela não morreu pobre como nascera. Luzinete sempre foi muito justa – e generosa – com a mãe. Aliás, a sorte de muita gente mudara quando a estrela de Sandro brilhou mais forte. A parentada toda ficou abastecida. E, agora, com a morte da velhinha, então, havia mais para ser distribuído. Porém, Luzinete estava de fora disso. Nada ali lhe interessava mais. Tudo que ela queria era chegar à Alemanha, voltar a trabalhar e continuar sua vida sem dever nada a ninguém. Acontece que Luzinete tinha agora uma missão. Ao se compadecer da amiga de infância, convidou-a para ir com ela para a Alemanha. Garantiu a amiga: Lá, você terá como ganhar dinheiro de verdade. E não precisa ser como eu. Pode ser digna e honestamente. Mais como um ato desesperado que qualquer outra coisa, Vera embarcou com a, agora, amiga no dia seguinte ao enterro de dona Zefinha. Luzinete pagara passagem e prometeu custear a Vera até ela ganhar dinheiro o suficiente para pagar suas despesas. Vera deixara os filhos e a promessa de uma vida sofrida. Dias depois, ela nos confidenciou que não tinha sonhos nem ambições com relação à Alemanha. Tudo que ela queria era ganhar dinheiro para sustentar a si, aos filhos e a mãe dela, claro. Dona Carminha só ganha dinheiro para comprar remédios e o básico que uma casa precisa. Por isso, ela ficou empolgada com a viagem da filha. Queria mudar de vida, finalmente. Dona Carminha ficou tão feliz que prometeu cuidar dos filhos de Vera com todo zelo até que a filha pudesse levá-los para a Alemanha. Vera está na Alemanha há um ano e meio e não pretende voltar. Ela trabalha numa agência de viagens de lá – já fala alemão fluente. Está ganhando dinheiro para viver como rica, considerando a situação que temos no Brasil. Manda um dinheirão para a mãe e os filhos todo mês. Está tudo tão bem que a grana do Osmar é entregue ao padre Alberto para caridade. Ontem, a Vera chegou da Alemanha. Veio visitar a mãe e os filhos. Disse não aguentar mais de saudade. A Martinha foi buscá-la no aeroporto sozinha porque eu tive reunião no escritório até tarde. A fofoca, motivo desta ligação matutina é a Vera. Muito bem Martinha, fala! Como se fosse preciso pedir para a Martinha falar. A Martinha fala pelos cotovelos! Foi logo desembuchando que a Vera voltara da Alemanha cheia do dinheiro. Blusa, calça, sapato, perfume, jóias – exageradas como ela sempre gostou, malas, tudo de grife. Mas a nossa amiga virara uma esquizofrênica. Foi logo perguntando pelo número da doutora Suênia. Ela queria fazer um tratamento relâmpago, penso eu. Segundo a Martinha, a Vera fez um escândalo dentro do avião. Estava com medo que o avião caísse e ela não queria morrer. A própria Vera foi logo explicando a Martinha que havia desenvolvido síndrome do pânico, transtorno de ansiedade, toc, depressão e mais, ainda se disse bipolar. Se eu estivesse lá, teria dito logo que isso foi macumba do Osmar. Ele nunca se conformou com a partida dela. Aquela Vera estava completamente louca. Disse estar tendo crises de falta de ar que a levam sempre ao hospital. Na Alemanha, os médicos já explicaram que se tratava de um distúrbio psicológico. E Vera sabe a causa disso. Agora, ela tem dinheiro mas não tem os filhos. E tão cedo ela não poderá levá-los para a Alemanha. A documentação para a sua permanência naquele país está em andamento ainda. No aeroporto, Vera desabafa com a Martinha quando um senhor entra na conversa. Vera contava que no domingo antes de viajar foi até uma igreja para, mais uma vez, pedir a Deus que a curasse desse mal. Foi aí que ouviu o padre dizer que precisamos ser mais fortes em nossa fé. Disse o padre que quanto mais pedimos algo a Deus estamos testando o Seu poder. A Vera ficou balançada com aquilo. Acabou se culpando pela sua cura não alcançada. Era falta de fé e muitos testes a Deus. O senhor que entrou na conversa, veio para dizer que o padre estava errado e que era preciso fazer nossos pedidos a Deus quantas vezes fosse necessário. Disse o senhor que, às vezes, Deus cochila. Mas a Vera não concordou. Gritou logo que Deus não cochila NUNCA! Eu não tenho certeza disso. Sei que eu acabei acordando antes da hora e que a Vera, mesmo com sua esquizofrenia a flor da pele, não vai deixar a vida alemã para ficar com os filhos.


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