Esquelética. Alta até demais. Óculos fundo de garrafa. Rosto e corpo deformado. Se ela gostasse de se olhar no espelho seria de admirar. Sofrera, na sua infância, de febre reumática. Aprendera desde cedo que a vida é feita de escolhas. Na maioria das vezes, temos que escolher entre o que já temos. Portanto, decidira viver apesar de sua condição não promissora na questão beleza abre portas. Por dentro, ela devia ser bela. É o que dizem dos feios. Por fora, o jeito meigo a deixava com um ar engraçado. Ela era engraçada. E inteligente, era. Entregou-se aos estudos a vida toda. Sempre quis ser professora e o foi. Durante anos ensinara na Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Língua Portuguesa e Língua Francesa, chegou ao Doutorado se dedicando as pesquisas linguísticas. Seu local de trabalho era a sua casa. Lembro que ela sempre se esquecia de como gostávamos de aborrecê-la enquanto fazia a chamada em sua aula. Toda santa aula, um de nossos colegas, ao invés de responder présent! Ou ici! Sempre respondia je suis. Olhos por cima das lentes dos óculos, ela respondia com um ar bastante sério: “Ma... Ma... Ma... Je suis é eu sou, Marquinhos!” Lembro igualmente de tantas lições. Chegado o momento da aposentadoria, declarou que só deixaria seus alunos no dia em que morresse. Não casou. Nunca teve filhos. Não tinha sequer um animalzinho de estimação para fazer companhia enquanto em casa. Não acredito que se sentisse só. Talvez, um pouco, às vezes. Era aí que entrava o Chico Buarque. Tinha toda a sua coleção. Morava em um apartamento confortável. Tinha tudo que precisasse. Para seu trabalho e para uso pessoal. Não sei se lhe faltava algo. Pessoas, talvez. Sei que era feliz. Pelo menos enquanto estava no trabalho. Em casa, nunca soube se seus livros e o Chico lhe eram suficientes. Sei que senti sua falta. A professora não voltou para trabalhar. Em plena segunda-feira. Era como se ela não tivesse voltado para casa. Um dia. Dois dias. Mais um dia para que nos chegasse a notícia. A professora inteligente e de jeito engraçado havia recebido declaração de aposentadoria vinda dos céus. Nua, chuveiro ligado, cortina do box arrancada, jazia caída ao chão por três dias. Jamais esquecerei a última lição que deixara.
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