segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Terço

MARIA LÚCIA. Uma mulher feita daquilo que a vida lhe dera e não das escolhas que poderia ter feito. Nascida em cidade do interior antes que terminasse a segunda década dos anos de 1900, filha única e de um único irmão. Aos três anos de idade perde a mãe. Seu pai a entrega a uma madrinha que só conheci de nome. Tinha nome de personagem de conto de fada e agia como um. Maroca. Madrinha Maroca. Se esse não era seu nome verdadeiro nunca soube qual era. Viveu longe do irmão, cresceu como qualquer mulher daquela época aprendendo a ser prendada. Já estava ficando velha e encalhada antes de completar sua segunda década de vida. Mas com padrinhos que se prezem não ficaria encalhada. Fizeram seu casamento com o bom partido da cidade. Um farmacêutico – quem dominava remédios naquela época era mais que médico. Era um deus. – viúvo com três filhos pequenos. Por sorte ou por destino ela se apaixonou pelo moço farmacêutico. Maria Lúcia me confidenciara muitíssimos anos depois que já espichava o olho para o tal viúvo. Menina saidinha para a época. O homem era casado. Pobre moça deve ter rezado muito por penitência.

MARIA LÚCIA. Uma mulher casada com três filhos pequenos para criar sem nunca ter estado grávida. Deste estado ela não pode ficar livre muito tempo. A tarefa de cobrir o santuário para que os santos não presenciassem um momento de maior intimidade do casal era do viúvo – agora não mais viúvo. Maria Lúcia ficou grávida várias vezes. Perdeu alguns bebês. Contudo, conseguira aumentar os filhos do farmacêutico – melhor chamá-lo assim já que não se trata mais de um viúvo – para doze. Por um apenas talvez o casal tivesse tido mais sorte na vida. Porém, Maria Lúcia não era mulher de acreditar em sorte. Maria Lúcia acreditava era em Deus. Sobre Deus e rezas sua madrinha lhe ensinara também.

MARIA LÚCIA. Agora mulher dona de casa grande com empregados e filhos correndo para todo lado. As coisas poderiam ter saído melhor mas o marido farmacêutico de Maria Lúcia era asmático. Ao casar, dias e noites passaram a ser iguais para ela. Depois das bodas de prata, as coisas ficaram mais difíceis para o farmacêutico de Maria Lúcia. Sua asma não dava descanso. A essa época, já existiam jovens médicos na cidade. Um deles aconselhou o casal a trocar de cidade. O clima na capital era mais apropriado ao problema do ex-viúvo.

MARIA LÚCIA. Moradora da capital. Os problemas com a asma diminuíram. No entanto, os remédios haviam maltratado o coração de seu farmacêutico por demais. Ele morrera do coração em plena copa do mundo e em dia de jogo do Brasil. Maria Lúcia tornara-se, então, viúva. Viúva, mãe, avó, bisavó, prestadora de serviços a comunidade, rezadora plena e convicta. Essa passou a ser a sua condição de vida. Santa Maria Lúcia. Quem poderia discordar disso? Não há ser humano capaz de tal feito. Maria Lúcia aprendeu a rezar e rezava. Dia e noite, noite e dia. Ensinou filhos, netos e bisnetos o mesmo ofício. Nenhum deles ousou não seguir a lição.

MARIA LÚCIA. Aprendera e ensinara muitas coisas. Até mesmo sem querer ela entregava todos os dias aos que tinham olhos para ver, uma lição. Maria Lúcia, mulher perfeita e intocável, ficou doente. No processo de tratamento desafiou os médicos. Fez milagres acontecerem. Entretanto, ela precisava ir. No dia anterior a sua partida, entregou seu espírito ao Pai. Neste mesmo dia pensei em ficar ali a noite toda. Disseram-me que não era necessário. Ela mantinha os olhos fechados enquanto rezávamos ao pé de seu leito. Havíamos entrado nos anos 2000 e a família se fazia cheia de médicos. Nenhum farmacêutico. Um dos médicos chegou e nos mandou ficar preparados. Beijei sua mão e saí. Dormi. Na manhã seguinte, meu despertador foi o telefone. Maria Lúcia havia morrido. Corri para o hospital e lá encontrei Maria Lúcia sendo preparada para o seu funeral. Tratei de observar se as suas recomendações estavam sendo seguidas. Estavam. Questionei um fato. Besteira. Realmente, aquilo não fazia diferença. Não mais.

MARIA LÚCIA. Deitada inerte, ainda não tinha as mãos cruzadas. Em um dos braços ela ainda trazia um de seus companheiros de vida toda. Um terço. Esse era bento pelo papa. Terço de pérolas trazido diretamente de Roma, na Itália, por ocasião de seu aniversário de oitenta anos. Era presente de sua filha mais nova, filhos e netos. Esse terço o acompanhara durante todo o seu calvário. Não posso dizer que era seu amuleto. Maria Lúcia só acreditava em Deus. Aquele terço era a prova da sua devoção e fé no Senhor. Na finalização de sua caracterização para o velório, o terço italiano foi trocado por outro. Por um rosário, na verdade. O rosário franciscano. Maria Lúcia era franciscana. Franciscanos fazem votos e pedem uma preparação específica para esse dia. Ela vestia sua toga marrom escura e levava o rosário franciscano no peito.

MARIA LÚCIA. Mantinha o rosto sereno. Um pouco assustada por trás de algumas pessoas eu a olhava. Havia perdido a coragem de tocar sua pele. Talvez para não constatar a frieza que caracteriza os defuntos. Do alto, por entre as pessoas, uma mão me estende o terço que Maria Lúcia trazia no braço ao suspirar pela última vez. Agarrei-o como quem agarra água no deserto. Depois, pensei em entregar-lhe a sua filha mais velha. Desisti. Por egoísmo ou por preferir acreditar que o terço me veio como um presente dos céus. Eu entregava Maria Lúcia. Ganhava o terço bento por João Paulo II. O corpo desceu. Não contei os palmos. Voltei para casa.

MARIA LÚCIA. Não se encontrava. Contei que guardara o terço. Deixaram-me com ele. Sete chaves e o terço lá. Quieto. Estar com aquele terço em mãos era a concretização de um enorme vazio que ficara. Três ou quatro dias se passam. Busco o terço. Só quero olhar para ele. Não rezo mais. Emudeci ao trocar a ordem das ave-marias – que ninguém me escute. Está lá. Quieto. Muito bom. Não sei se a vida segue ou se a gente é que segue com ela. Eu segui. O tempo perdeu-se, eu quis olhar o terço outra vez. Ele estava lá. Debaixo das sete chaves, ele estava lá. Estranhamente estranho. O terço não tinha luz. Havia ficado escuro, opaco. Não era mais aquele terço brilhante de antes. Parecia ter perdido a vida. Era isso. Com Maria Lúcia aquele terço tinha vida. Sinal? Oxidação? Pérolas oxidam?!

MARIA LÚCIA. Ainda é. Nunca deixou de estar. Peguei o terço e o examinei. Não havia nada errado com ele. O que havia de errado era a coloração acobreada que as pérolas ganharam. Não havia porque elas ficarem daquele jeito em tão pouco tempo. Assustei-me e intriguei-me. Pérolas não oxidam. Porém, eu descobri que é o corpo feminino que dá vida a elas. É a suave oleosidade do corpo feminino que ativa o lustre das pérolas. Era verdade. Maria Lúcia dava vida a elas. Aquela vida viva que o terço tinha. Pois, no meu braço, mesmo depois de limpas as pérolas do terço não recuperaram o brilho que tinham no braço de Maria Lúcia. Triste, mesmo acreditando que as pérolas do terço perderam sua vitalidade para que Maria Lúcia falasse comigo, pendurei o terço junto ao crucifixo que ganhara dela na ocasião de meu casamento. Durmo e acordo olhando para ele naquela coloração acobreada. Talvez, ele seja um terço mágico – é bento pelo papa! Quem sabe um dia ele volte a ter vida? Quem sabe no dia em que eu conseguir reordenar as ave-marias?




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