quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A maior flor do mundo

Nada como ver um bom filme com outros olhos. Olhos de fome que quer ser saciada. A Mona Lisa sorriu e vi que eu é que não estava feliz. Estou sem nome. Sem nome porque perdi minha identidade quando lavei a roupa suja de casa. Que importa um nome? Um nome é apenas um código. Já falei isso e alguém não gostou. As pessoas pensam que são nomes. Sobrenomes, então, devem ser compridos e compostos. As pessoas são mais pessoas assim. Eu não sou essas coisas. Podia ser qualquer uma. Qualquer uma como tantas. A diferença é que eu escrevo. Escrevo quando tenho raiva. Cravo minhas letras nas paredes do meu quarto só para não esquecer cada detalhe que me faz ser quem sou. Escrevo com unhas e dentes. Escrevo enquanto limpo o fogão. Escrevo enquanto jogo o prato de comida azeda que o meu marido me fez pôr para ele e não comeu. Escrevo enquanto limpo o cocô do cachorro. Escrevo enquanto passo a roupa que não uso. Escrevo. Penso. Enxugo o sangue nas pontas dos meus dedos. Resolvo. Resolvo que não estamos mais em 1954. Por que a foto é a mesma? Mundo-muda-não. Vou rasgar a foto. Tirarei uma foto pós-futurista. Uma foto em que eu, Mulher que sou, possa me movimentar livremente enquanto o fotografo captura a minha imagem. Já existem câmeras assim. Elas captam o movimento da imagem sem estragar a foto. Não preciso ficar parada para sair bem na foto. Vou correr. Saltar. Gritar. Minha terapeuta confirmou. Não sou dona de casa. Dane-se o mundo. Eu sou Flor. A maior flor do mundo, diferentemente de sua prima Seringueira, é um parasita, exala cheiro de carne podre mas tem a sua serventia.




Imagem da Internet

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Azul de Metileno




Linha do Equador, 12 horas de luz, 12 horas de escuridão, Equinócio de primavera. Equilíbrio não é apenas fonte de sobrevivência mas de vida viva. Dizer que ela era bizarra, soaria como dizer que o céu é azul ou que a lagarta da Costa Rica vira borboleta para viver apenas dois dias. Adélia vivia em seu próprio canto. Dentro de uma cápsula que ela transportava com ela aonde quer que fosse. Há tempos em que o calendário não conta, arranjou um outro artifício para afugentar pessoas ao seu redor. É isso que essa menina melhor faz. Comprou várias camisas de cores variadas com a mesma inscrição. Era o seu mais do mesmo. Já era perturbador se dirigir ou sequer olhar para aquela criatura. Mais difícil ficou ao darmos de cara com ela vestindo camisa que dizia: “DON’T LOOK AT ME”. Era instantâneo. Você virava os olhos antes mesmo que seu cérebro conseguisse decifrar a mensagem. Adélia seguia, então, sozinha. Tal inscrição dizia mais do que dizia. Aquelas palavras pareciam mais uma advertência. “Tire os olhos de mim”. E assim, estava feito. Deixávamos de lhe dirigir um “Bom dia” ou um simples sorriso que diz “Você pertence ao mesmo lugar que eu. Convivamos em paz”. A áurea que cercava Adélia passou a ser ainda mais escura depois que ela começou a usar aquelas camisas – verdade que a maioria era de cor escura. Triste fico ao ver uma menina tão jovem - seja clichê ou coisa de gente que está ficando velha - se recusar a ver o colorido que o mundo traz. Falta-lhe sonhar mais. Falta-lhe buscar a flor de Narciso que dorme no fundo das águas que não correm por dentro dela. Falta-lhe acreditar que a dor de amor é dor boa de doer. Falta-lhe chorar pelo que não volta. Falta-lhe sorrir para o que se abre. Enfim, falta-lhe nascer outra vez ainda neste mundo.













sábado, 5 de setembro de 2009

Texto-livro




Era uma vez a história de mim mesmo e de certo presente que ganhara durante a minha infância – não sabia eu, ainda por ter a sua pureza e tranquilidade interrompidas prematuramente.

Estávamos no quintal de casa, minhas irmãs e eu, debaixo do meu pé de jambo. Meu porque tomara conta dele desde que nos mudamos para a casa que pertencera a minha avó “Miolanda”. Era na copa daquele pé de jambo que eu costumava me esconder quando alguma coisa me entristecia ou me enfurecia. Curioso era que lá eu acreditava estar a salvo. Meu esconderijo secreto. Na verdade, esconderijo, aquele lugar só fora na primeira vez que me escondi lá. Logo me descobriram ali. Mesmo assim, eu subia lá nos momentos em que eu procurava refúgio. A copa daquela árvore era meu refúgio sagrado. Do alto de meus nove ou dez anos, eu já fazia as minhas reflexões.

Bem, estávamos debaixo do meu pé de jambo – Ah! Ainda hoje sinto uma saudade danada de boa quando vejo um jambo ou um jambeiro. Comer um jambo, então, é como estar lá em cima outra vez. Meu pai se aproxima. Meu pai... Figura indecifrável para mim naquela época. Ele já se foi. Não penso mais tanto nele. Absolvi-me da culpa que nunca tive e procuro aceitar o que chamam Destino. Ele teve o dele, eu sigo o meu. Meu pai... Talvez, tenha sido esse o único momento realmente feliz e livre de qualquer sentimento negativo que ele me obrigara a sentir com relação a ele. Meu pai trazia nas mãos uma caixa. Não era uma caixa bonita, colorida, com laço de fita de cetim. Era uma caixa comum, de papelão. Podia ser uma caixa de um leite qualquer ou de biscoito maisena. Daquelas que levam os produtos para o supermercado. Na hora, não pensei em nada. A caixa estava aberta e dava pra ver o que havia dentro dela. Não importava coisa alguma do lado de fora da caixa. Apenas o que ela trazia. Era um filhotinho de cachorro. A coisa mais mágica que vi até aquele momento de minha vida. Ele era todo branquinho. Só tinha o focinho e os olhos pretos. Se ele saísse rolando seria confundido com um grande chumaço de algodão.

Não sei por que cargas d’água meu pai cismou em dar nome aquele cachorro. Era bem característico dele isso. Tudo o que ele fazia implicava em uma condição. Nos trouxe um presente que não lembro termos pedido – sendo o filho mais velho, eu haveria de me lembrar disso. Todas as crianças que conheço, pedem por um animalzinho de estimação aos seus pais. Se pedi, não lembro. Sei que o presente chegou. Era um filhote de cão vagabundo. Assim como a caixa que o trazia. "Sem raça definida" – assim passaram a chamar os vira-latas. Branquinho, branquinho. E meu pai insistiu em chamá-lo de Black. Certamente, ele não sabia inglês, penso eu. Porém, eu, logo descobriria que “black” não era branco e que Black não era preto. Essa, talvez, tenha sido a minha descoberta mais besta. Que importava isso? Conheço uma Jéssica que se chama “Géssica”! Será que Géssica tem a sua identidade abalada pela troca do J pelo G? Black correndo de um lado para o outro nem suspeitava da querela que o envolvia. Entendia que se chama Black. Era só chamar. Ele vinha correndo.

Essa questão não durou muito na minha cabeça. E nem poderia! As brincadeiras com Black me fizeram esquecer de qualquer coisa que me desagradava. Até o meu pé de jambo ficou sem uso. A não ser pelos jambos que eu continuei comendo. Não sei quantos anos Black completou comigo. Embora aquele tempo parecesse infinito, sei que foram poucos. Assim como que de repente, um terremoto abalou a minha casa. Abriu-se um enorme buraco no chão. Meu pai desandara de vez a perder os sentidos entornando copos e copos com aquela água de cheiro forte e gosto amargo. Ele usava sempre limão nesses momentos e ouvia Roberto Carlos em altíssimo e bom som. Fiquei um tempo sem poder sentir o cheiro ou ver um limão. Quanto ao Roberto, ainda estou tentando me reaproximar dele. Não dava mais para a minha mãe. Nem para mim. Eu tinha um irmãozinho pequeno. Minhas irmãs já não queriam mais voltar para casa quando saiam para a casa da minha outra avó. Eu tinha que voltar. Eu tinha a minha mãe, um irmãozinho e um cachorro. Mas depois daquele terremoto, tivemos que sair correndo de lá. O cachorro ficou. O lugar que serviria de abrigo para mim, minha mãe, meu irmãozinho e minhas irmãs, mal comportava a todos nós. Fui obrigado a esquecer o cachorro.

Um dia voltei. O terremoto tinha levado muita coisa. O pé de jambo ainda estava lá mas sem jambos. O cachorro era outro. Quis me morder quando me aproximei. De coração infantil despedaçado, pensei que era melhor esquecer o terremoto, o pé de jambo, meu pai e o cachorro. Continuei seguindo meu Destino que passara a ter uma estrada tortuosa. Algum tempo, não sei quanto - havia esquecido dos dias e noites. Era tudo igual agora - encontrei um cachorro branco na rua. Estava diferente daquele que quis me morder. Estava mais magro, sujo e estava gentil. Não Black mas o nome Brown era que lhe caberia naquele dia. Ele nos seguiu até o nosso novo abrigo. Mas não podíamos ficar com ele. Já éramos seis lá. Não havia lugar para um cachorro. Por isso, fingíamos não conhecer aquele cachorro. Minha mãe disse ser melhor assim. E eu fingia. Não pensava. Só fingia. E esquecia toda a alegria que aquele cachorro me trouxera. Seguimos assim. O cachorro nos seguia e nós o ignorávamos. Mais um dia, dois dias, três dias, o cachorro desapareceu. Tudo resolvido. Vai ver ele seguiu seu Destino.

Eu não precisava mais fingir que não conhecia o cachorro. Ele não mais poderia servir de ponte que nos levaria de volta ao meu pai. O meu Destino, cada vez mais, de estrada tortuosa me faz seguir. Eu cresço. Passo a sentir falta do meu cachorro. Que diabos ele tinha que ver com aquele terremoto? Tomara que exista mesmo o céu dos cachorros. Sei que ele já se foi. Talvez esteja com o meu pai. Quando eu me for, quero ir para lá, também. Preciso pedir perdão ao meu Black. Dessa culpa que não tive, não consegui me absolver. Espero te abraçar de novo, amigão!

Era uma vez a história de como me perdi de meu cachorro. Me chamam Álvaro. Eu tinha um cachorro branco que se chamava Black.



Image by Lundern on Deviant Art