quinta-feira, 24 de março de 2011

Tempero de vidas e de almas



Acreditar no Destino torna a vida mais poética. É como se fôssemos criaturas de um autor qualquer. Há quem diga que é-nos tirada toda a nossa responsabilidade. Fazemos o que nos é dito.  Não há o poder da escolha e, mesmo que fujamos do que nos é determinado, o Destino de cada um de nós sempre será cumprido. Hoje, me sinto uma entidade mitológica daquelas que recebem uma previsão de um oráculo e tentam fugir. Não sei se por medo de enfrentar o que está por vir ou se por não saber, ao certo, o que fazer. O que sei é que não adianta fugir de meu Destino. Ele me encontrará em forma de chuva de ouro que fecunda Dânae, de flecha certeira ao calcanhar de Aquiles, de lã que vence o labirinto do Minotauro, de disco desviado pelo vento que matou Jacinto, de flauta que adormece os cem olhos de Argos ou da dúvida que levou Prócris a morrer nas mãos de Céfalo. Está escrito. Ponho-me, então, ao seu dispor, prezado autor. A voz do narrador falou-me ao pé do ouvido: “você é o sal que falta”. Ponho-me sal, tempero de vidas e de almas.


"Bem temperado, até osso cai bem."
(Provérbio Popular)


Image by Cathdelanssay On DeviantArt


sexta-feira, 18 de março de 2011

Eu que lavava flores



Uma traça na parede do consultório da minha dentista. Relâmpago. Estico a mão e alivio meu incômodo psicótico. Tenho problemas com traças. Não deixo sequer uma pendurada em parede alguma. Nem em minha casa, nem em lugar nenhum. Minha dentista me olha com um semblante furioso. Parecia saber que usei minha psicose com traças para correr daquela cadeira em que, embora deitado, não se consegue relax. Há planos que mudam sem aviso prévio. Senhor Tempo decidiu, decidido está. Por quase duas horas, agonizo de boca escancarada sentindo o peso da mão daquela mulher. Saio de lá com a boca tão torta que não consigo comer minha torta preferida. Cheesecake de frutas vermelhas. Antes, eu preferia as tortas de maçã. Não sei, ao certo, por quê. Nunca fui americana do norte, nem ao menos estive nos Estados Unidos. Antes, tudo era diferente. Inocente eu era, gostava de andar no carrossel, tinha um cofre cheio de moedas, comia sem sentir fome, me empanturrava de jujubas e meus dentes não sofriam com cáries. Antes virou agora. Inocente desvirginada, os carrosséis me deixam tonta, tenho contas sem pagar, sinto fome toda hora, sofro de hipoglicemia e carrego um dente esburacado. Alias, dente é o que não me falta. Não devo ser digna de confiança. Ultrapasso os 32. Mais dois dentes estão surgindo em minha fóvea sublingual. Um de cada lado. Abstraio. Deixo o estresse para o momento de resolver o problema. Suspiro. Respiro. Sigo. Penso. Eu que lavava flores no jardim de minha avó era feliz e sabia.  


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sábado, 12 de março de 2011

Adversos



A constante luta de nós dois
Faz de mim Eu, às vezes, Alter Ego
Se sou Eu, humano,
Sofro as consequências de meus atos
Se sou Alter, sobre-humano,
Falo o que preciso ouvir
Ingênuo, inconstante, enquanto Eu,
Nem ato nem desato minhas mãos
Astuto, insistente, enquanto Alter,
Liberto o que preso está
Ele, entidade de uma só face
Eu, homem de múltiplas faces
Rasgo espelhos quando
Neles não me reconheço


Image by Meluseena On DeviantArt

terça-feira, 8 de março de 2011

Coragem de Maria



Faltam Marias. Maria não se faz mais como antigamente. Esta é a primeira manhã de carnaval em que o silêncio se faz presente. Ando na rua em silêncio sepulcral. Observo casas quietas e silenciosas como se fossem túmulos. Em meio a elas, pareço um fantasma. Do nada, não mais que nada, meu mais íntimo eu toma uma decisão. Não houve pensamento preparatório para tal. Teria outro fantasma me incitado àquela decisão? Olho para os lados, nenhuma viva alma. Apenas eus. De repente, um grito. Uma Maria me traz um presente. Estranho. Há meses não via Maria e, agora, ela me chega com um presente que reforçava meu pensamento. Uma alegria quase carnavalesca toma conta de meu coração. Há lugar para você dentro de mim. Maria se vai. Eu sigo. Encontro uma casa aberta. Um túmulo em movimento. Entro. Quem não é Maria, mas, é cidade sepultada por cinzas que emolduraram seus habitantes, se deixa redescobrir. Ela me conta uma história, eu conto outra. Marcamos um chá ao fim da tarde. Ela tem mais a contar. Também tenho mais a falar. No entanto, estou preferindo ouvir. Deixo a cidade e volto a andar em meio ao silêncio. Arrelia só em minha cabeça. Tua voz me chega, vejo sinais. Assusto-me. Falta-me coragem para alcançar meu desejo. Não te preocupas. Hei-de buscar a coragem de Maria.


Image by annejulie on DeviantArt

sexta-feira, 4 de março de 2011

Céu sem calendário

Silêncio é palavra que não faz segredo.
Fábio de Melo


Inquietas. Eu e minhas memórias. Era preciso que eu começasse assim. Não devo falar em primeira pessoa. Sou um baú cheio de quinquilharias esperando ordem. Há dias em que a vontade de calar é mais forte que o meu falar sem vírgulas. Nestes dias, somos apenas nós. Eu e minhas memórias. Ninguém e nada mais nos cabem. Esta noite, enquanto eu calava, falavam as minhas memórias. Dia desconhecido, ano que não se sabe ao certo. Tempo perdido. Lugar preferido de minhas memórias. São José da Coroa Grande-PE. Passávamos férias lá, eu e minha avó. Tempo perfeito. Todos os meus sonhos cabiam em um baldinho de praia cor de rosa. Nos passeios à beira da praia, meus sonhos ficavam mais povoados. Juntavam-se a eles, conchinhas, estrelas do mar e peixinhos que catávamos na praia. Meu aquário cor de rosa foi minha primeira experiência com cuidados. Minha dedicação tamanha com aqueles seres não foi suficiente para que eles resistissem por uma noite. Nem assim eu desistia. A cada nova manhã, voltávamos, vovó e eu, a catar a vida para meu aquário cor de rosa e para os meus sonhos. Minha ingenuidade me fazia acreditar que a vida se renovava a cada nova conchinha, a cada nova estrela do mar e a cada peixinho que eu catava. Páginas arrancadas da Folhinha, bem sei que não é assim. Mas é bom pensar que podemos ter a vida de volta. Às vezes, volto a acreditar nisso. Voltar a São José me traz paz. Esqueço do tempo e calo. Não me importa o dia de hoje, onde estou ou como estou. Sinto o vento em meu rosto, pés sujos de areia, as mãos molhadas e cheias de sonhos. Tudo fica perfeito. Outra vez.


 


Imagem da Internet.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Aula de corpo presente




Esquelética. Alta até demais. Óculos fundo de garrafa. Rosto e corpo deformado. Se ela gostasse de se olhar no espelho seria de admirar. Sofrera, na sua infância, de febre reumática. Aprendera desde cedo que a vida é feita de escolhas. Na maioria das vezes, temos que escolher entre o que já temos. Portanto, decidira viver apesar de sua condição não promissora na questão beleza abre portas. Por dentro, ela devia ser bela. É o que dizem dos feios. Por fora, o jeito meigo a deixava com um ar engraçado. Ela era engraçada. E inteligente, era. Entregou-se aos estudos a vida toda. Sempre quis ser professora e o foi. Durante anos ensinara na Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Língua Portuguesa e Língua Francesa, chegou ao Doutorado se dedicando as pesquisas linguísticas. Seu local de trabalho era a sua casa. Lembro que ela sempre se esquecia de como gostávamos de aborrecê-la enquanto fazia a chamada em sua aula. Toda santa aula, um de nossos colegas, ao invés de responder présent! Ou ici! Sempre respondia je suis. Olhos por cima das lentes dos óculos, ela respondia com um ar bastante sério: “Ma... Ma... Ma... Je suis é eu sou, Marquinhos!” Lembro igualmente de tantas lições. Chegado o momento da aposentadoria, declarou que só deixaria seus alunos no dia em que morresse. Não casou. Nunca teve filhos. Não tinha sequer um animalzinho de estimação para fazer companhia enquanto em casa. Não acredito que se sentisse só. Talvez, um pouco, às vezes. Era aí que entrava o Chico Buarque. Tinha toda a sua coleção. Morava em um apartamento confortável. Tinha tudo que precisasse. Para seu trabalho e para uso pessoal. Não sei se lhe faltava algo. Pessoas, talvez. Sei que era feliz. Pelo menos enquanto estava no trabalho. Em casa, nunca soube se seus livros e o Chico lhe eram suficientes. Sei que senti sua falta. A professora não voltou para trabalhar. Em plena segunda-feira. Era como se ela não tivesse voltado para casa. Um dia. Dois dias. Mais um dia para que nos chegasse a notícia. A professora inteligente e de jeito engraçado havia recebido declaração de aposentadoria vinda dos céus. Nua, chuveiro ligado, cortina do box arrancada, jazia caída ao chão por três dias. Jamais esquecerei a última lição que deixara.


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